Estoril: pelo menos 68 milhões em nome da Fórmula 1

A conturbada história do Autódromo do Estoril, equipamento onde foram gastos milhões de euros por sucessivos Governos sem que, até hoje, se tenha encontrado uma solução para dar relevo desportivo ao circuito.

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A última vez que a Fórmula 1 esteve no Estoril foi em 1996 MARK RALSTON/AFP

Quando o Estado assumiu o controlo do Autódromo Fernanda Pires da Silva, há 19 anos, a manutenção do Grande Prémio (GP) de Portugal de Fórmula 1 (F1) era uma prioridade governamental. O receio de perder a mediática corrida, disputada ininterruptamente na pista do Estoril entre 1984 e 1996, apressou o Executivo, liderado por António Guterres, a celebrar o denominado “acordo global” com a Grão-Pará, detentora do equipamento. Para regularizar dívidas ao Fisco, Segurança Social, Tesouro e Fundo de Turismo, estimadas em 20 milhões de contos (100 milhões de euros), o grupo empresarial cedeu 51% das acções da infra-estrutura desportiva, mais um hotel na Madeira, falido e encerrado desde 1995, e um bloco de apartamentos. O erário público investiu mais 25 milhões de euros para obras de adaptação do circuito às exigências dos responsáveis pela F1. Quase 20 anos e pelo menos 68 milhões de euros depois o desejado GP continua a não ser mais do que uma miragem.

Inaugurado a 16 de Junho de 1972, o circuito do Estoril - baptizado como Autódromo Fernanda Pires da Silva, em homenagem à empresária fundadora do Grupo Grão-Pará -, foi o primeiro empreendimento do género construído em Portugal, com potencial para acolher as grandes provas motorizadas internacionais. A partir de 1984, passará a ser um dos palcos do Mundial de F1, a classe rainha do automobilismo, o que originará vários diferendos entre a Autodril (empresa gestora do equipamento que integra o universo da Grão-Pará), a Câmara Municipal de Cascais (CMC) e o Estado central, que culminarão com a “nacionalização” da infra-estrutura.

Através de um protocolo celebrado ainda em 1984, a Autodril já tinha autorizado a autarquia cascalense a utilizar as instalações do autódromo quatro vezes por ano, durante 25 anos (até 2009), a título gratuito, responsabilizando-se a edilidade pela organização e encargos financeiros dos eventos, nomeadamente o GP de F1. Apesar do acordo, as relações entre Helena Roseta, presidente da CMC, e Fernanda Pires da Silva eram tensas, com a autarca a solicitar a expropriação do Autódromo do Estoril (AE) para pagamento de dívidas ao município, não assumidas pela proprietária do equipamento. Ao mesmo tempo, também o Estado central admitia a hipótese de receber a infra-estrutura como forma de pagamento de dívidas de uma empresa do Grupo Grão-Pará (a Interhotel) à banca nacionalizada, mas a possibilidade deste activo integrar qualquer dação em cumprimento foi prontamente rejeitada pela própria Fernanda Pires da Silva.

A resistência da empresária a uma passagem do circuito para a esfera pública durou até 1991. Em Setembro desse ano, o Grão-Pará celebra um contrato-promessa de compra e venda do AE, mediante a cessão à Autodril dos créditos que o Estado detinha sobre as empresas do grupo. No desenho do acordo, calculou-se em 3,6 milhões de contos (18 milhões de euros) o valor da alienação, mas o negócio não chegaria a concretizar-se.

O processo conhece desenvolvimentos em Março de 1993, após novo encontro entre a administração da Autodril e o Governo, liderado por Cavaco Silva, com ambas as partes a manifestarem intenção de dar cumprimento ao acordado dois anos antes. Na reunião, o secretário de Estado do Tesouro José Braz esclareceu que a prioridade do Estado não seria exactamente adquirir o AE, mas encontrar uma forma de garantir a realização do GP de F1 e de outras provas desportivas de interesse público. Mais uma vez o contrato não será cumprido, motivando, em resposta, uma acção judicial do grupo de Fernanda Pires da Silva.

Em 1996, o Grupo Grão-Pará volta a pressiona o Governo, agora conduzido pelo socialista António Guterres, para resolver o processo, ao mesmo tempo que vão surgindo notícias sobre a eventualidade da F1 sair de Portugal se não forem executadas obras urgentes no AE, nomeadamente na pista que apresentava graves deficiências, impeditivas de uma futura certificação da FIA (Federação Internacional do Automóvel). Com o GP em risco, o Executivo acelera, sem mais delongas, as negociações que levariam à assinatura do “acordo global”, celebrado a 8 de Julho de 1997 e ratificado pelo Conselho de Ministros dois dias depois.

O polémico "acordo global"
Augusto Mateus, ministro da Economia, e Vitalino Canas, secretário de Estado da Presidência do Conselho de Ministros, negociaram um acordo que pretendia, segundo os seus próprios termos, a “resolução definitiva e global de todos os diferendos, incluindo dívidas e acções judiciais, avolumados ao longo de mais de 20 anos”, que opunham sociedades do Grupo Grão-Pará ao Estado. O problema é que o valor exacto das dívidas em causa era, ele próprio, motivo de grande controvérsia e, em rigor, o Governo não sabia. Segundo Vitalino Canas, o montante foi avaliado, “grosso modo”, em 20 milhões de contos (100 milhões de euros), admitindo, contudo, não conseguir garantir que o Estado conseguisse provar judicialmente a existência de muito mais do que os 4,2 milhões de contos (20,9 milhões de euros) que o Executivo PSD havia calculado em Novembro de 1989.

Mais tarde, no âmbito de uma Comissão Parlamentar de Economia, a 16 de Janeiro de 1998, Joaquim Pina Moura, antecessor de Augusto Mateus na pasta da Economia, que interveio igualmente nas negociações do “acordo global”, referiu que, quando o Governo tomou posse (em 1995), verificou que as empresas do Grupo Grão-Pará tinham acumulado dívidas de elevado montante ao Fisco e à Segurança Social. De acordo com Pina Moura, estas dívidas ao Fundo de Turismo e à Direcção-Geral do Tesouro somavam cerca de 14 milhões de contos (70 milhões de euros), acrescidos de mais 2,3 milhões de contos (11,5 milhões de euros) devidos à Direcção-Geral das Contribuições e Impostos e ao Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social. Já de acordo com a administração do Grupo Grão-Pará, o montante das dívidas – cuja regularização foi decretada ao abrigo da “Lei Mateus” – seria apenas de 3,6 milhões de contos (18 milhões de euros), incluindo capital e juros.

Estas profundas divergências em relação aos valores em causa não impediram o “acordo global”, que seria mais tarde alvo de um inquérito parlamentar, onde se apreciaram os negócios envolvendo o Estado e interesses privados e no qual se concluiu pela inexistência de qualquer "perdão de dívida".

No âmbito do acordo, o Grupo Grão-Pará, através da Autodril, cedeu, por dação em pagamento, 51% das acções da sociedade imobiliária proprietária do Autódromo do Estoril, tendo sido ainda acordado a constituição de uma sociedade gestora deste equipamento, cabendo ao Estado 51% do respectivo capital social.

Ao mesmo tempo, também por dação em pagamento, a Grão-Pará entregou o Hotel Atlantis Madeira (que seria demolido posteriormente devido à ampliação do Aeroporto do Funchal), assim como um bloco de apartamentos (denominado “flats 4”). Se a unidade hoteleira foi avaliada pelas Finanças em 5,1 milhões de contos (25,4 milhões de euros) e os apartamentos em 370 mil contos (1,8 milhões de euros), já em relação ao autódromo não houve uma avaliação autónoma com vista à celebração do “acordo global”, discordando as partes em relação ao seu valor. Em 1993, um perito indicado pelo Estado avaliou a infra-estrutura em 4,3 milhões de contos (21,5 milhões de euros), que contrastavam com os 14,1 milhões de contos (70,3 milhões de euros) determinados por um perito nomeado pela Autodril.

Nada que inviabilizasse o negócio que permitia ao Estado controlar a infra-estrutura desportiva. “Penso que vamos ter vida nova e tudo está preparado para, como já anunciei, por acordo com a FIA [Federação Internacional do Automóvel] e a FOCA [Associação de Construtores de Fórmula 1, na sigla em inglês], haver um contrato de 5+5 anos que garante que os investimentos são feitos e são produtivos e, sobretudo, que o GP de F1 em 1998 se fará já no quadro duma pista bastante melhorada, onde se vai investir significativamente para que, como disse, não tenhamos em Portugal mais um Grande Prémio, mas algo que vai passar a ser conhecido como imagem do país”, congratulou-se o ministro Augusto Mateus, numa entrevista ao semanário Expresso, a 12 de Julho de 1997, negando, por outro lado, que o “acordo global” tenha resultado num “perdão de dívida” ao Grupo Grão-Pará. Esta será também a convicção do inquérito parlamentar, cujas conclusões foram publicadas a 10 de Maio de 1999. O texto final não colheu unanimidade, acabando por ser aprovado apenas com os votos dos deputados do PS e, mais surpreendentemente, com os do CDS/PP.

Obras superam o orçamentado
Rubricado o acordo, o Estado apressou-se a ultimar as obras exigidas pela Federação Internacional Automóvel (FIA) para fazer regressar a F1 ao circuito (que já perdera o GP de 1997), como, já acontecera anteriormente com outras obras no equipamento - entre 1984 e 1996, saíram do erário público cerca de 2,1 milhões de contos (aproximadamente 10,5 milhões de euros) para obras no circuito. As empreitadas previstas para 1997 eram da responsabilidade da CMC, que recebeu um milhão de contos (cinco milhões de euros) do Estado para o efeito, mas o Tribunal de Contas (TdC) chumbaria os contratos celebrados pela autarquia com o consórcio responsável pelos trabalhos, devido a diversas irregularidades processuais, nomeadamente o ajuste directo das obras. Esta decisão e um diferendo entre o Governo e a Autodril acabaram por impedir a conclusão atempada dos trabalhos indispensáveis para assegurar a realização do GP de 1998.

Mesmo assim, as obras iriam prosseguir, mas teriam um custo bem acima do programado. Uma auditoria do TdC à Sociedade Gestora do Autódromo (SGA), publicada em Fevereiro de 2000, revelou um “desvio” de quatro milhões de contos (20 milhões de euros) em relação ao inicialmente orçamentado. Uma ausência de planeamento global, atrasos sucessivos nos trabalhos e inexistência de um sistema de controlo interno a nível financeiro, entre outros problemas detectados, foram avançados pelo TdC como responsáveis pela “derrapagem”.

A 7 de Junho de 2002, o Estado passará a controlar directa e indirectamente a totalidade do capital da SGA, após o Grupo Grão-Pará ter concluído um acordo com a Caixa Geral de Depósitos (CGD) para liquidar dívidas ao banco estatal, financiando a operação com o produto da venda dos 49% que a participada Autodril detinha na SGA e na Sociedade Imobiliária do Autódromo. Como a CGD entendeu não estar vocacionada para estar representada na SGA, o então ministro das Finanças, Oliveira Martins, deu ordens à Parpública, para adquirir o capital entregue pela Grão-Pará a esta instituição bancária, a troco de 17,4 milhões de euros.

Já em Novembro de 2007, o advogado do Grupo Grão-Pará, Tito Fontes, irá revelar que as duas operações (1997 e 2002) de aquisição dos activos e das empresas responsáveis pelo autódromo do Estoril terá custado ao Estado um valor global não inferior a 35 milhões de euros. Com as obras efectuadas para a manutenção da F1 e outros investimentos feitos no equipamento, o erário público terá investido mais 33 milhões de euros, totalizando um custo a rondar os 68 milhões de euros.

Na mesma altura e ironicamente, o presidente do Grupo Grão-Pará, Abel Pinheiro, considerou estranho que o Estado tenha gasto uma soma tão elevada para assegurar a continuidade da F1, quando a prova deixou de se realizar precisamente depois das entidades públicas terem tomado o controlo da infra-estrutura.

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