“Não devemos ter serviços que ninguém procura”
Maria Manuel Leitão Marques considera que a Saúde e a Educação são áreas que devem ficar sob gestão do Estado. E alerta que quando se simplifica a administração, há funções que desaparecem e é preciso requalificar os trabalhadores.
A ministra da Presidência e da Modernização Administrativa defende um novo paradigma na relação dos cidadãos com o Estado: em vez de prevalecer a lógica da organização estatal, é criar uma organização em função das necessidades dos cidadãos e das empresas. Pretende continuar a obra do Governo de Passos Coelho e lamenta que este, no início da legislatura, não tenha dado atenção e tenha parado muitas das medidas que vinham de trás.
Na sua opinião, quais são as áreas que não podem mesmo deixar de ser geridas pelo Estado?
Para além da funções de soberania, da Justiça e da Segurança — que são indiscutivelmente áreas da competência do Estado — não deve deixar de existir Educação pública, porque é uma condição de igualdade e faz parte da estratégia de valorização das pessoas. Se não dermos a possibilidade a todos os cidadãos de aceder ao sistema educativo de qualidade desde a sua infância, estamos a criar desigualdade futura no acesso ao rendimento e ao exercício de cargos profissionais, que nunca mais corrigiremos. Essa é, para mim, uma área onde o Estado não deve desaparecer.
Mais alguma?
Saúde, sem dúvida nenhuma. Sou adepta, utente, militante do SNS, porque, tal como a Educação, é um serviço de condição de vida, de qualidade de vida. Se também aí criarmos um sistema não público, limitaremos o acesso à qualidade de vida de muitos cidadãos que não têm rendimentos para o poder custear.
Não coloca no mesmo patamar de igualdade a Segurança Social?
A Segurança Social não é a mesma coisa, evidentemente que tem que haver uma Segurança Social sustentável, não penso é que seja um serviço prestacional, é um serviço contributivo. Coloco em pé de igualdade, complemento destes e até indissociável da Educação e da Saúde, o apoio social. Embora aqui o Estado tenha que ter uma acção combinada com as IPSS, que têm um trabalho fundamental de completar e apoiar a iniciativa pública.
O Governo anunciou a eleição directa dos presidentes das áreas metropolitanas de Lisboa e do Porto nas autárquicas de 2017. É uma forma de começar uma reforma do Estado?
Sem dúvida, a reforma do Estado tem essas componentes todas. Neste momento, a organização do Estado não é uma questão para nós, a não ser em questões pontuais que precisam ser resolvidas. A orgânica da administração central foi alterada com o PRACE, em 2005-2007, voltou a ser mexida com o Premac [2011]. Se estivermos sempre a chocalhar a orgânica do Estado isso perturba os funcionários, os serviços e a sua produtividade. E gasta-nos muito para termos benefícios nem sempre por demais evidentes.
Mas haverá descentralização de competências?
Pode haver competências que passem para um nível maior de proximidade. É um balanço que temos de fazer: onde é que o serviço público pode ser prestado com mais qualidade ou até com mais eficiência, se for prestado por uma autarquia ou pela administração central.
Em anteriores transferências de competências, nem sempre o envelope financeiro foi suficiente.
É muito importante que a transferência de competências seja acompanhada da transferência de recursos devidos. Se não estamos a varrer um problema para a casa do outro.
A descentralização não pode abrir a porta a encher o aparelho de Estado de girls e boys?
Não, de todo. Não estamos a criar serviços novos, estamos apenas a transferir competências para autarquias que já existem, sejam elas freguesias, sejam municípios, sejam áreas metropolitanas.
A descentralização vai gerar mais emprego?
Até pode gerar menos, até pode reforçar competências que já existem nas autarquias e que assim podem ser mais bem aproveitadas e ter políticas mais integradas e de maior proximidade aos cidadãos. Para o cidadão, a imagem do Governo é muitas vezes o seu presidente da Câmara ou até o seu presidente da junta de freguesia. É a ele ou a ela que o cidadão muitas vezes se queixa de competências que são da administração central para já não dizer da administração europeia. Sou grande adepta do poder local, talvez por não viver em Lisboa.
Se gerar menos emprego, os trabalhadores correm o risco de ser colocados no quadro de excedentes (regime de requalificação)?
Os funcionários públicos têm vindo a diminuir desde 2005. Temo-lo feito sistematicamente [na administração central] e as autarquias também. Quando simplificamos não podemos deixar as pessoas, que estavam a fazer uma coisa que deixou de ser precisa, sem fazer nada. Mas podemos realocá-la em outras funções. Há funções que cresceram no Estado, refiro-me por exemplo à área das tecnologias de informação e comunicação, as TIC. É uma área que há vinte anos tinha uma influência muito pequenina dentro da administração central e local. E hoje é uma área crucial. Temos a Justiça, os Registos também, a Autoridade Tributária, a Segurança Social assentes em sistemas de informação. Esse é o caminho.
E quanto aos trabalhadores excedentes?
O quadro de excedentes sempre foi uma ficção muito bem disfarçada, temos é que revalorizar os funcionários, requalificá-los. Muitas pessoas licenciadas em História, em Filosofia, em Biologia podem aprender programação, que é uma área que tanto a administração pública como o sector privado têm uma procura deficitária que vai aumentar. São recursos normalmente caros, temos de saber como lhes pagar para os conservar cá dentro. Isso é muito importante, porque senão estamos sempre em sub-contratação, que é mais cara. Estamos também a estudar como criar centros de competências que não sejam exclusivos do ministério A ou do B, mas partilhados.
Está a dizer que há sempre forma de aproveitar as pessoas?
As pessoas são o mais importante e as pessoas que estão na administração pública são em geral pessoas motivadas, disponíveis, que é preciso saber valorizar. Isto foi muito importante no Simplex.
Este Governo garante que quem está na requalificação poderá encontrar de novo um lugar no Estado?
Acho que sim. Temos que ver caso a caso, não pode ser decidido em geral. Temos de encontrar maneira de qualificar essas pessoas, pois não temos pessoas a mais na administração pública e nalgumas áreas até temos falta de competências.
Como vai cativar as pessoas que fazem falta sem aumentar os custos?
Há problemas que não podemos resolver no imediato. Quem me dera ter hoje à minha disposição um sistema de incentivos e prémios para a administração pública, que existe, mas não está activo. A seu tempo, quando for possível, penso que o devemos reactivar. Mas há muitas maneiras de motivar as pessoas, trabalhando com elas com proximidade, valorizar o exercício das suas funções e não fazer crer que a função pública é um conjunto de pessoas inúteis que vivem à custa dos impostos dos cidadãos. Além disso, repusemos alguns direitos.
Ao simplificar a administração, o Governo está ciente do risco de ter de encerrar serviços públicos?
Temos muitas maneiras de reformar os serviços públicos sem passar pelo encerramento. Se passo a entregar a minha declaração de IRS pela internet ou através de um espaço do cidadão com ajuda de um funcionário, para que é que tenho na repartição de finanças essa valência? Os serviços públicos devem ser como uma loja, têm os produtos que se vendem e que os cidadãos procuram. Se os cidadãos deixam de procurar aquele serviço, ou trocamos por outro que é mais procurado, ou reajustamos a nossa oferta. Não devemos ter serviços que ninguém procura, porque isso é um desperdício para todos nós cidadãos. Portanto, a nossa lógica de valorização do serviço público não é uma lógica conservadora, é inovadora. É prestar de maneira diferente, quando é possível mudar, e aquilo que é relevante e não aquilo que lá existia no século XIX.
Uma das propostas do Governo é a criação do balcão único de emprego. O que será?
Estamos a montar a equipa que vai desenhar esse balcão. A lógica que está por detrás desse balcão e de outras iniciativas que vamos tomar. Voltando à empresa na hora, são 46 minutos e 34 segundos em média que leva a criar uma empresa, mas para muitas actividades não basta eu criar a empresa, eu quero é começar a trabalhar. Por outro lado, quando procuro emprego ou interajo com os serviços públicos em matéria de emprego, quero tentar ter toda a informação no mesmo balcão. Portanto, o meu evento de vida, o meu acontecimento de vida é procurar emprego, ou pôr a empresa a trabalhar e não apenas criar a sociedade comercial. Nós queremos proceder à reorganização do atendimento, organizando os serviços por evento de vida, o que implica uma forte colaboração com os municípios.
Isso é inverter a lógica da organização do Estado.
É inverter um paradigma. O paradigma actual é que cada cidadão contacta com o Estado da forma como o Estado se organiza. Vai à Segurança Social, vai ao centro de emprego, etc. E agora o Estado passa a organizar-se de acordo com as necessidades do cidadão. Não tenho de alterar as competências, mas usar as funcionalidades que a tecnologia oferece para dar uma resposta integrada ao cidadão, juntando as autarquias e vários serviços da administração central.
Resumindo: os serviços da administração central e local podem chegar juntos ao cidadão através de balcões reais, numa autarquia, por exemplo.
O serviço está desmaterializado. O cidadão pode usá-lo directamente em casa, na sua empresa ou vai a uma autarquia, a uma loja do cidadão, a um espaço do cidadão e o serviço é-lhe prestado por um funcionário [sistema digital assistido].
Isso não implica um reforço do sistema informático?
Implica que os sistemas informáticos dialoguem entre si. No caso do cartão de cidadão, há vários sistemas que dialogam, sem que as bases estejam fundidas. Quando peço o cartão no Registo Civil ou numa Loja do Cidadão e entro no chamado ciclo de vida do cartão, ele vai dialogar com as Finanças, com a Segurança Social, com o registo eleitoral. Cada sistema mantém as suas bases, há uma interoperabilidade para aquele efeito. O projecto é ter também para o evento emprego um balcão integrado.
Quando entra em funcionamento?
Gostava que fosse ontem, mas sendo realista vamos ver se conseguimos completar a primeira fase no primeiro Simplex.
As carrinhas móveis vão manter-se?
Vão, com certeza. Infelizmente, a única carrinha que existe é a de Palmela que já lá estava em 2011, mas é uma boa ideia e é um outro exemplo de como a tecnologia permite um serviço de proximidade. É muito importante que pessoas que vivem em centros de apoio de terceira idade e com mobilidade reduzida possam renovar os seus documentos. A renovação também é um bom exemplo [do caminho que podemos percorrer]. Hoje, a administração, usando as TIC de forma transformadora, pode ser muito mais pro-activa. Todos nós já temos a nossa declaração de IRS quase preenchida e limitamo-nos a confirmar os dados. No caso dos documentos que têm que ser renovados se soubermos que o Cartão de Cidadão ou a Carta de Condução vai expirar daqui a um mês e pudermos fazer a marcação do momento de atendimento, podemos organizar melhor a nossa vida. Isto hoje é uma medida que é possível desenvolver.
Há uma reposição dos salários dos funcionários públicos em curso e uma diminuição de horas de trabalho semanal no Estado.
Que deve ser feita sem implicação de custos.
Como é que isso se faz?
Ajustando a distribuição do trabalho nas 35 horas. Cabe às várias direcções de serviços reajustar a distribuição de trabalho. Essa é uma questão muito importante em Portugal e não só no sector público, é uma questão de que um dia me tornarei militante civil.
A reorganização do tempo de trabalho?
É importante que, quando entra no trabalho, saiba a que horas sai. Há países onde é possível. A pessoa sabe a que horas entra e a que horas sai. A sua produtividade é muito mais controlada durante o seu horário, mas sabe que a partir daquela hora tem tempo para a sua família e para o lazer.