A higiene na Roma Antiga não evitou a propagação de lombrigas e outros parasitas
Apesar dos aquedutos, dos sistemas de esgotos, das latrinas e dos banhos públicos, parasitas como as pulgas, as ténias ou um verme que existe nos peixes continuaram a existir nas cidades romanas.
Na obra-prima de Marguerite Yourcenar, Memórias de Adriano, publicada em 1951, a escritora belga coloca-nos como herdeiros de Roma. O romance é um relato na primeira pessoa da vida do imperador romano Adriano, e a sua profundidade e qualidade evocativa tornam credíveis os pensamentos daquela figura histórica, que viveu entre 76 e 138 d.C. Por isso, é possível reencontrarmo-nos com o legado de Adriano quando ele diz ver em cada frágil povoação, protegida por paliçadas, futuras metrópoles que seguem a mesma “unidade da conduta humana” da Roma Antiga, o mesmo modelo civilizacional.
A partir de um legado destes, é natural que o quotidiano daquela civilização seja observado à lupa pelos historiadores e nasçam perguntas como a do investigador Piers Mitchell, da Universidade de Cambridge, no Reino Unido: “Queria ver se as tecnologias de saneamento introduzidas na Europa pelos romanos beneficiaram a saúde das pessoas que viviam sob as regras romanas.” O paleopatologista tentou perceber se parasitas como as lombrigas e as pulgas desapareceram com a expansão do império romano, comparando vestígios arqueológicos romanos com outros anteriores. A resposta é não, conclui um artigo publicado na revista Parasitology: os parasitas não desapareceram nas cidades romanas e muito provavelmente até proliferaram.
“Os romanos eram conhecidos por disseminar as suas ideias sobre literatura, engenharia, cultura, cozinha, religião e higiene”, lê-se no artigo. “A propagação do conhecimento romano – a água limpa e fresca dos aquedutos, o aquecimento debaixo do chão das casas, os banhos públicos para as pessoas se lavarem, as casas de banho com descarga, os sistemas de escoamento e esgotos – poderia, em teoria, ter melhorado a saúde dos habitantes.”
Piers Mitchell explica como é que estes equipamentos públicos eram utilizados e por quem. “As latrinas públicas eram normalmente gratuitas. Os banhos públicos tinham um custo de entrada, mas penso que eram bastante baratos. No entanto, os mais pobres não tinham as suas próprias latrinas e teriam usado um pote, que depois era esvaziado na rua para um esgoto aberto”, explica o investigador ao PÚBLICO.
Apesar de a República de Roma ter nascido no final do século VI a.C., as fronteiras máximas do império romano foram conquistadas apenas no século III d.C., alcançando a costa do Norte de África, o Próximo Oriente, o Sul e Oeste europeus e parte da Grã-Bretanha. Naqueles séculos, as culturas da Idade do Ferro e da Idade do Bronze na Europa foram sendo substituídas pela cultura romana. Regras de higiene, como a retirada dos dejectos humanos das ruas para serem levados fora da cidade, foram aplicadas nas novas cidades do império.
Para compreender o impacto destas medidas na prevalência dos parasitas humanos, Piers Mitchell procurou na literatura provas da existência de parasitas do sistema digestivo humano nas antigas latrinas, nas sepulturas e nos coprólitos – fezes fossilizadas –, bem como de parasitas da pele como piolhos, pulgas ou piolhos púbicos, em tecidos e em pentes encontrados em locais arqueológicos romanos.
Assim, os romanos eram infectados por ténias na Grã-Bretanha, no Egipto e na Alemanha, e por lombrigas na Áustria, em Israel, na Holanda e na Polónia, entre outros países. Estes e outros parasitas estavam tão dispersos no império romano como nas culturas europeias anteriores, o que significa que a vida romana não os tinha evitado.
Há mesmo o caso de um parasita intestinal responsável pela difilobotríase, que infecta pessoas quando comem peixe mal cozinhado, e que se tornou muito mais frequente durante o império romano graças a um pitéu chamado garum. Este prato, à base de peixe não cozinhado e fermentado, era levado até locais longe da costa, transportando o parasita que acabava por infectar populações que antes não teriam acesso a peixe na Áustria, na Alemanha e noutras regiões.
No artigo, Piers Mitchell conclui que a grande mudança em relação aos tipos de parasitas que afectavam as populações humanas terá acontecido muito antes dos romanos, quando se começou a cozinhar os alimentos e se deixou de comer carne crua, evitando os parasitas provenientes da caça, por exemplo.
Mas qual a razão do insucesso da higiene romana? “Um factor-chave foi que as leis romanas que exigiam que os dejectos fossem recolhidos das ruas e fossem levados para fora das cidades eram responsáveis por reinfecções, já que eram muitas vezes usados para a fertilização dos campos”, diz o investigador, explicando que o uso actual de fertilizantes químicos torna alguns parasitas, como as lombrigas, menos frequentes. Outra razão poderá estar nos próprios banhos públicos, que não seriam limpos com a regularidade necessária.
No entanto, o investigador não desdenha a engenharia romana: “Os esforços de melhorar o saneamento teriam tornado o quotidiano mais conveniente para as populações. Além disso, provavelmente as cidades cheirariam melhor.”
Estas antigas preocupações associadas à urbanização continuam nas cidades de hoje, com resultados muito mais satisfatórios. Nesse sentido, podemos voltar às Memórias de Adriano e à sua ideia de legado, que o imperador nos sussurra através da história: “Roma perpetuar-se-ia na mais pequena cidade onde os magistrados se esforçassem por verificar os pesos dos negociantes, limpar e iluminar as ruas, opor-se à desordem, à incúria, ao medo, à injustiça, e reinterpretar razoavelmente as leis. Assim, só decairia com a última cidade dos homens.”