À procura do Bosch verdadeiro, entre polémicas e surpresas

Há seis anos que o Projecto Bosch analisa obras atribuídas ao pintor flamengo para definir o seu legado real. Houve quem se descobrisse dono de um desenho do mestre, mas também houve quem "perdesse" três pinturas de uma só vez. O Museu do Prado protesta. Catalogar é um processo complexo.

Fotogaleria
O tríptico Juízo Final, do Museu de Groeninge, em Bruges, esteve em Portugal entre Julho e Setembro de 2011, mas à data era atribuído a um dos seguidores do pintor Daniel Rocha
Fotogaleria
A equipa do projecto Bosch esteve em Setembro de 2011 no Museu de Arte Antiga para ver à lupa o tríptico Tentações de Santo Antão (c. 1500), uma obra assinada de Jheronymus Bosch Nuno Ferreira Santos
Fotogaleria
Mesa dos Pecados Capitais é uma das obras do Museu do Prado cuja atribuição da Bosch é agora posta em causa Cortesia: Museu do Prado
Fotogaleria
Segundo os peritos do Projecto Bosch, Extracção da Pedra da Loucura também não foi pintada pelo mestre flamengo Cortesia: Museu do Prado
Fotogaleria
Daniel Rocha

Filipe II de Espanha, I de Portugal (1527-1598), era um católico fervoroso, um monarca instruído e culto. Dono de um vasto império, era também um amante das artes. Apesar da complicada situação financeira de Espanha, cujas guerras que travava em várias frentes exigiam muito dinheiro, foram várias as obras de arte que o rei encomendou e adquiriu. Entre elas, pinturas de Jheronymus Bosch.

Filipe II, que não chegou a conhecer o artista que morrera em 1516, comprou-as crendo que tinham saído das mãos deste mestre que poucas vezes assinou e datou as suas criações. Agora, uma equipa de peritos internacional, a do Projecto de Investigação e Conservação Bosch, está prestes a publicar o relatório em que concluiu, entre outras coisas, que três das pinturas das colecções reais espanholas que hoje pertencem ao Museu do Prado, em Madrid, e que até aqui eram atribuídas ao artista flamengo, não foram, muito provavelmente, por ele executadas: Mesa dos Pecados Capitais, Extracção da Pedra da Loucura e Tentações de Santo António Abade. 

Metade das obras que a pinacoteca espanhola expõe como sendo do pintor serão assim, de acordo com este grupo de investigadores, da autoria de alguns dos seus seguidores. Os conservadores do Prado, que fazem questão de mencionar que o museu tem a maior colecção de Bosch do mundo, contestam as conclusões, como seria de esperar. E é por isso que este relatório do Projecto Bosch, uma monografia de dois volumes, já instalou a polémica, mesmo antes da sua publicação, agendada para 1 de Fevereiro.

A equipa, liderada por Matthijs Ilsink, historiador de arte do Noordbrabants Museum, em Hertogenbosch (Holanda), terra onde o pintor nasceu, entre 1450 e 1460, tem vindo a estudar e a documentar as obras atribuídas ao artista flamengo desde 2010 com o objectivo de determinar, de forma tão definitiva quanto possível, quais foram executadas por Bosch, famoso pelas suas representações singulares do inferno e do paraíso. Uma tarefa que, apesar de enquadrada por processos científicos, não está livre de contestação.

Entre as obras cuja autenticidade voltou a ser confirmada está o tríptico Tentações de Santo Antão (c. 1500), que pertence à colecção do Museu Nacional de Arte Antiga, em Lisboa, que foi cuidadosamente examinado em 2011 e que será emprestado a Madrid para a exposição com que o Prado assinalará os 500 anos da morte do pintor ( Bosch: A exposição do centenário, entre 31 de Maio e 11 de Setembro).

O PÚBLICO contactou o Prado à procura de reacções ao relatório, mas o gabinete de comunicação do museu informou que nenhum dos seus conservadores estava disponível. No entanto, ao diário espanhol ABC, o seu director adjunto, Miguel Falomir, contestara já as conclusões. Lamentando que o “autodenominado Projecto de Investigação e Conservação Bosch" tivesse enviado as suas conclusões do relatório sem contar com os contributos da pinacoteca madrilena, disse: "Os seus argumentos são pouco contundentes.” Pilar Silva, chefe do departamento de Pintura Flamenga e Escolas do Norte (1400-1600) do museu, assessora do Projecto Bosch desde o arranque, vai mais longe, acrescentando que os técnicos do museu foram usados como meros "adereços" em todo o processo: “Não nos consultaram em nada para fazer o relatório. Trabalharam com material maravilhoso, mas não souberam tirar proveito dele." A conservadora refere-se à análise minuciosa de cada uma das obras, feita recorrendo, por exemplo, à macrofotografia e à refelctografia de infravermelhos, técnicas que permitem aceder a pormenores da pintura invisíveis a olho nu e mesmo ao que está por baixo das camadas de tinta.

Segundo especificou o historiador de arte Ron Spronk, que pertence à equipa de peritos, à Queen’s Gazette, a revista da Universidade de Queens (Canadá), onde lecciona, o estilo do desenho subjacente (aquele que a pintura esconde) e a qualidade global da Mesa dos Pecados Capitais, por exemplo, não são comparáveis aos de outras obras que estão no cerne da produção de Bosch.

Argumentos "para rir"
Pilar Silva, que será a comissária geral da exposição que o museu inaugura em Maio, não pode discordar mais, dizendo que os argumentos usados pelos peritos do Projecto Bosch para retirar a autoria a três das pinturas do Prado são simplesmente "para rir". E explica porquê, nas páginas do ABC, pegando precisamente na Mesa...: "[Os peritos] não gostam do desenho, dizem que é diferente dos que fazia. Mas todos os desenhos de Bosch são diferentes. E a paisagem [também] não lhes parece da época, mas não sabem quando foi feito ao certo. Apontam para depois da sua morte. Depois de dizerem tudo o que lhes ocorre, terminam reconhecendo que não a estudaram directamente."

Mas não foi só o Museu do Prado que recebeu más notícias: o Museu de Belas Artes de Gent, na Bélgica, viu a autoria de Cristo Carregando a Cruz igualmente posta em causa. Ainda assim, o historiador Ron Spronk defende que as “descobertas não diminuem a qualidade ou a importância destas obras”. Da análise feita a Cristo Carregando a Cruz, os investigadores determinaram que a obra tem muito poucas semelhanças com outras de Bosch para ter sido pintada pelo próprio ou até mesmo por um seguidor que com ele tivesse trabalhado directamente.

Ao The Art Newspaper, publicação especializada em notícias do mundo da arte, uma porta-voz do museu de Gent disse que a notícia não é uma “surpresa”, visto que a autoria vinha a ser debatida há décadas. Agora o museu belga quer reunir-se com a equipa para “fazer trabalho de investigação adicional”. “Qualquer que seja o resultado, ninguém duvida que [Cristo Carregando a Cruz] continua a ser uma obra-prima da pintura tardo-medieval e um dos maiores tesouros do museu de Gent. E se as reacções no museu e nas redes sociais servem de indicação, parece claro que os visitantes vão continuar a adorar esta impressionante peça de arte medieval, independentemente de quem a pintou”, acrescentou a porta-voz.

Entre más notícias
Mas a investigação não trouxe apenas más notícias. O tríptico Juízo Final, que integra o catálogo do Museu Groeninge (Bruges, Bélgica) e que já esteve exposto em Lisboa em 2011, foi pintado apenas por Bosch e não teve a participação da sua oficina, como se julgava.

Porém, a grande surpresa até agora revelada é um desenho, Paisagem do Inferno, que pertence a um coleccionador privado. Os peritos não têm dúvidas - esta obra recheada de almas perdidas, criaturas fantásticas e monstros bizarros saiu da mão do mestre. Segundo o The Art Newspaper, até aqui julgava-se que fora produzido na oficina do pintor por um dos artistas que com ele trabalhavam. “[Este desenho] não é apenas uma imitação bem-sucedida, como alguns lhe chamaram. Este é muito, muito bom”, garantiu ao jornal o líder da equipa, Matthijs Ilsink.

Depois de ver Paisagem do Inferno no catálogo de desenhos de Bosch de Fritz Koreny (Brepols Pub, 2012), Ilsink decidiu contactar o proprietário para o analisar. Como o The Art Newspaper faz saber, os investigadores recorreram a reflectografia de infravermelhos e a fotografia digital de alta resolução para documentar a obra. Quanto ao papel, à caligrafia e às tintas, compararam-nos aos de desenhos que integram colecções em Berlim, Viena, Paris e Roterdão, que serão indiscutivelmente de Bosch.

A equipa percebeu, então, que existem ligações entre figuras de Paisagem do Inferno e as do desenho subjacente de outras obras. Ilsink aponta como exemplo o homem retratado no cesto em Paisagem do Inferno, que é semelhante a uma figura escondida pela camada cromática do tríptico O Jardim das Delícias, uma das mais célebres obras de Bosch que pertence à colecção do Prado.

O historiador lembra ainda que o pintor mudava muitas vezes de ideias enquanto pintava – os desenhos subjacentes provam-no -, afirmando que “alguém que fizesse uma imitação das suas obras não teria acesso a estas versões anteriores”, veria apenas a camada pintada.

Dificuldades da atribuição
O programa que assinala os 500 anos da morte de Bosch, cuja data de nascimento não é conhecida ao certo, arranca a 13 de Fevereiro com a exposição Jheronymus Bosch: Visões de Génio, co-organizada por Matthijs Ilsink no Noordbrabants Museum. Será aqui que Paisagem do Inferno vai estar, pela primeira vez, num museu.

À exposição do museu holandês segue-se a do Prado, que está a ser promovida como “a mais importante exposição de sempre dedicada ao artista”, com “mais de 60 obras” do mestre e de outros artistas. Na exposição estarão 23 pinturas do autor das Tentações de Santo Antão - um número impressionante quando são 27 as que lhe são geralmente atribuídas, explica a comissária, Pilar Silva, ao ABC. Os desenhos também lá estão: dos 11 por regra reconhecidos como sendo de Bosch, seis poderão ser vistos em Madrid, ao lado de outros cuja autoria não é certa.

Por detrás da atribuição de uma obra há sempre procedimentos complexos e demorados. “É um longo processo”, diz ao PÚBLICO José Alberto Seabra Carvalho, conservador de pintura de Arte Antiga. A análise que a tecnologia permite não é suficiente, defende o também director adjunto do museu, que explica que “a informação que resulta da análise do laboratório dá pistas e só funciona comparativamente”.

Seabra Carvalho lembra que o processo depende da própria obra, da matéria e da conservação, factores que podem dificultar ou facilitar a atribuição. “O facto de a investigação, os exames, não sugerirem que determinada obra é de outro pintor, não dispensa a comparação visual. Tem de se olhar para a obra e compará-la a outra", observando elementos como o traço e as cores, diz o conservador.

A atribuição de uma obra valoriza-a sempre, é certo, e a rejeição da autoria retira-lhe peso no mercado. Contudo, José Alberto Seabra Carvalho defende que “as obras cuja autoria é questionada continuam a ter interesse iconográfico” e não deixam de ter qualidade. Quanto ao Projecto de Investigação e Conservação Bosch, não põe em causa os resultados avançados: “O projecto tem gente suficientemente idónea para não lançar conclusões desse tipo sem fundamentos.”

Texto editado por Lucinda Canelas

Sugerir correcção
Comentar