Walter Salles: “Jia Zhang-ke é um realizador essencial para entender o mundo”
O Festival de Cinema Luso-Brasileiro mostra em presença do realizador de Central do Brasil o documentário que dedicou ao autor de Um Toque de Pecado
À partida, nada juntaria o brasileiro Walter Salles (n. 1956), o realizador oscarizado por Central do Brasil (1998) que disparou para uma carreira internacional que inclui Os Diários de Motocicleta (2004) e Pela Estrada Fora (2012), a partir de Jack Kerouac, a Jia Zhang-ke (n. 1970), um dos mais aclamados autores da nova geração chinesa, realizador de Plataforma (2000), Natureza-Morta (2006, Leão de Ouro em Veneza) ou Um Toque de Pecado (2013, Prémio de Argumento em Cannes). Mas, como diz Salles ao PÚBLICO: “Como em música, é possível apreciar um instrumento que não tocamos. Fazer Central do Brasil não me impede de ter uma profunda admiração por Limite, o filme experimental que Mário Peixoto realizou em 1931, ou pelos filmes de João César Monteiro e Miguel Gomes, para citar dois grandes autores portugueses.”
Salles considera Jia um “realizador essencial para entender o estado do mundo”, e dedicou-lhe Um Homem de Fenyang, documentário estreado em 2014 no festival de Roma e apresentado em 2015 em Berlim, exibido na terça-feira no Festival de Cinema Luso-Brasileiro de Santa Maria da Feira (Auditório Municipal, 21h30). Grande admirador de documentários sobre cineastas – citando os títulos dedicados por Wim Wenders a Yasujiro Ozu ou Olivier Assayas a Hou Hsiao-Hsien – Salles aceitou responder por e-mail a algumas perguntas sobre o filme, em antecipação à sua visita a Portugal para o apresentar.
Fez este documentário depois de uma longa série de ficções rodadas fora do Brasil. Essa mudança de registo era necessária para si?
Procuro sempre voltar ao documentário entre dois projectos de ficção. É uma forma de você se reconectar com a realidade. De ressensibilização, de alguma maneira. [A curta] Socorro Nobre [1995, sobre a amizade por correspondência entre uma prisioneira brasileira e um artista polaco], por exemplo, acabou sendo uma das fontes de inspiração de Central do Brasil. E também gosto de trabalhar na confluência entre o documentário e a ficção, como aconteceu em A Praça, uma curta-metragem que realizei para os 70 anos do festival de Veneza.
Como conheceu Jia Zhang-ke e o que o levou a querer filmá-lo?
Xiao Wu [1997] e depois as obras-primas que são Plataforma e Natureza-Morta, além de 24 City [2008], deixaram claro que poucos cineastas filmavam as distopias do nosso tempo como ele. As suas personagens viviam no outro lado do mundo, mas as suas angústias e os seus desejos raramente me pareceram tão próximos. Em 2007, Jia veio pela primeira vez à Mostra de São Paulo e [o crítico] Leon Cakoff [1948-2011], que dirigia o festival e dividia a mesma paixão pelo seu trabalho, convidou-me para entrevistá-lo. Tivemos então uma primeira conversa em público. Fiquei tão impressionado pelo homem quanto pela obra… A ideia de um documentário e de um livro nasce nesse momento. Ainda me lembro da resposta que Jia me deu sobre os cineastas que o levaram ao cinema: “Antonioni me fez descobrir o que era o espaço, Bresson o tempo, e Hou Hsiao Hsien a importância de se traduzir as experiências pessoais nos filmes”. Abria-se um terreno fértil para conversar sobre sua obra, mas também sobre o cinema como espelho do mundo. Faltava encontrar o momento ideal para filmar. Sete anos passaram, a obra de Jia foi se tornando ainda mais ampla e complexa. No ano passado, filmámos.
Um Homem de Fenyang tem um cuidado formal muito evidente, com uma estrutura muito narrativa. Isso estava muito pensado na rodagem, ou nasceu no processo de montagem?
Havia um vector, o da investigação da memória. Um Homem de Fenyang parte do desejo de realizar um filme sobre diversas camadas da memória. As memórias de infância de Jia, dos anos de transição da adolescência para a idade adulta, que se misturam com a memória de uma cidade em mutação acelerada que é Fenyang, onde ele nasceu. E, também, da terra em transe na qual a China se transformou no mesmo período. Finalmente, quis convidar Jia a voltar aos lugares onde ele havia filmado, para falar de uma terceira camada da memória, que é a memória fílmica.
Éramos uma equipa pequena, coesa. Trabalhámos com apenas duas lentes fixas, e não usamos luz artificial. Ou seja, optámos pela depuração, pela subtracção. Essa arquitectura foi pensada a priori, mas a filmagem foi porosa aos "acidentes" que aconteceram enquanto rodávamos. E foram vários. Essa parte do filme foi integrada na montagem.
Quando você filma um cineasta explicando a sua inscrição específica num local – Fenyang nesse caso - e o modo como o seu cinema o reflecte, isso vem da curiosidade do fã que quer saber mais ou do cineasta que procura perceber como os outros trabalham?
Borges dizia que o que lhe interessava em literatura era dar nome ao que ainda não havia sido nomeado. Foi o que os primeiros documentaristas fizeram, em diversas latitudes. Hoje, numa época em que as imagens sofrem uma multiplicação sem fim, é cada vez mais dificil encontrar essa possibilidade no cinema. Nesse sentido, o que me moveu foi tentar entender como Jia consegue desvendar uma geografia física e humana tão específica, e outorgar-lhe tamanha transcendência.
Um Homem de Fenyang está sempre “entre” um retrato de uma personagem específica e um retrato de uma obra, integrando quase organicamente os extractos de filmes de Jia. Como atingiu esse equilíbrio?
Sim, é verdade. O facto dos filmes de Jia serem uma extensão de experiências pessoais, absolutamente singulares, permite esse entrelaçamento constante. Nesse sentido, o equilibrio entre vida e obra se impôs naturalmente, de uma forma mais intuitiva do que cartesiana. Deixando-se levar pela matéria fílmica que está sendo registada. Como se para o cinema existir fosse necessário esquecer que se está, justamente, fazendo cinema.