Da “contradição” à “conspiração” sobre o reembolso da sobretaxa de IRS
Execução orçamental aponta para crédito fiscal nulo. Governo demissionário diz que não houve manipulação. PS, PCP e BE falam em falsas expectativas criadas antes das eleições. Só em 2016 se saberá.
Na véspera de Maria Luís Albuquerque deixar o Ministério das Finanças, o último debate parlamentar sobre a execução do orçamento girou em torno de uma pergunta: o que aconteceu para que a projecção de reembolso da sobretaxa de IRS, que em Setembro chegava aos 35%, seja agora de zero?
Na comissão de orçamento, finanças e modernização administrativa – onde nesta quarta-feira foram ouvidos dois secretários de Estado da equipa de Albuquerque –, ouviram-se palavras como “manipulação”, “contradição” ou “conspiração”. Mas, no final, a dúvida ou a explicação de cada deputado permanecia intacta.
Primeiro, os factos: os números da execução orçamental divulgados nesta quarta-feira confirmaram uma notícia recente do Jornal de Negócios, dando conta de que o simulador das Finanças para o reembolso da sobretaxa de IRS em 2016 é de zero, tendo em conta a evolução das receitas somadas do IVA e do IRS.
Até Outubro, os dois impostos cresceram 3,5%, abaixo dos 3,7% projectados para o conjunto de 2015. Isto significa que se o ano terminasse em Outubro, não haveria qualquer reembolso da sobretaxa (no Orçamento o Governo inscreveu uma norma prevendo que toda a receita que ficar acima do previsto é alocada ao crédito fiscal).
O assunto aqueceu os últimos dias de Governo de Pedro Passos Coelho e, hoje, foi o tema inevitável da audição do secretário dos Assuntos Fiscais, Paulo Núncio, e do secretário de Estado do Orçamento, Hélder Reis.
Paulo Núncio faz um mea culpa em relação à “metodologia” de divulgação das projecções do crédito fiscal (desde Julho o Portal das Finanças passou a ter um simulador, tendo em conta a evolução das receitas do IVA e do IRS). Mas rejeitou a acusação de que o Governo manipulou os números.
A dúvida foi lançada pelos partidos à esquerda porque antes das eleições previa-se uma devolução de 35% e agora esse valor é de zero (“0,0%”, lê-se agora no Portal das Finanças). Só com a execução orçamental de Dezembro é que os contribuintes ficarão a saber se de facto vão receber, ou não, uma parte do que estão a pagar todos os meses em sobretaxa.
Os deputados do PS, PCP e Bloco de Esquerda acusaram o Governo de ter alimentado falsas expectativas antes das eleições porque conhecia o comportamento padrão da receita em cada mês, mas o secretário de Estado argumentou que o executivo se baseou sempre nos valores da cobrança já conhecidos, e garantiu que não houve manipulação.
O governante assegurou que esta evolução “decorreu exclusivamente do pagamento de impostos” e não, por exemplo, por um “empolamento artificial da receita por via de uma intervenção hipotética ou imaginária” dos reembolsos do IVA. Não há atrasos nos reembolsos, assegurou. O que há é um maior indeferimento dos pedidos das empresas, porque as regras de atribuição “foram estruturalmente alteradas” (o valor dos reembolsos caiu 5,2% face aos valores registados até Outubro de 2014).
As justificações de Paulo Núncio, que afirmou que esta medida nunca foi uma promessa, levaram o deputado do PS João Galamba a acusar o Governo de tentar reescrever a história e de, na campanha eleitoral, ter alimentado a expectativa em relação ao reembolso da sobretaxa.
Galamba lembrou declarações de membros do Governo durante a campanha das legislativas – nomeadamente da ministra das Finanças – em que os governantes se mostravam optimistas relativamente à devolução de dinheiro aos contribuintes. Declarações que, segundo o deputado socialista, não podem ser vistas senão como “promessas”.
Paulo Núncio respondeu que João Galamba não estava a citar as declarações completas da ministra das Finanças, porque quando Maria Luís Albuquerque se referiu aos valores da sobretaxa também disse que o crédito fiscal só poderia ser apurado em Dezembro. “Espero que nenhum deputado se lembre de acusar o Governo de manipulação”, afirmou o governante.
Depois de Galamba citar Maria Luís Albuquerque, foi a vez de a deputada do Bloco de Esquerda Mariana Mortágua lembrar o que disse o primeiro-ministro em Setembro. A deputada foi comparar o ”padrão de receita fiscal de 2014 e 2015”, concluindo que o Executivo, quando começou a divulgar os números, já sabia que em Setembro poderia apresentar uma projecção baseada num “pico anormal” da receita a que se seguiria uma queda. E, com esses dados nas mãos, as “afirmações” do primeiro-ministro “induziram uma expectativa falsa”, porque o “Governo conhecia a tendência”.
“Contradição inacreditável”
O deputado socialista Paulo Trigo Pereira encontrou no discurso de Paulo Núncio uma “contradição inacreditável”. Trigo Pereira vincou que há uma “previsibilidade enorme” na evolução de dois impostos mês a mês (IVA e IRC), permitindo que o executivo fizesse uma “gestão política eleitoralista do crédito fiscal”. “Digo-o com todas as letras”, afirmou o deputado independente do PS. E mantendo o tom de desafio, questionou: “Qual é a metodologia que usou para enganar objectivamente os portugueses?”.
O economista acredita que “não houve manipulação nos dados da cobrança” dos impostos – os portugueses devem confiar nos dados oficiais da máquina tributária –, mas considera que houve aproveitamento da “metodologia”, com o simulador das Finanças.
Núncio afirmou que, quando elaborou o Orçamento do Estado deste ano, o Governo “estava convencido de que seria possível superar as receitas de IVA e IRS” à semelhança do que aconteceu nos anos anteriores. “Admito que a metodologia para a comunicação mensal [da previsão do crédito da sobretaxa] possa ter contribuído para criar a percepção errada” ou mesmo “de uma promessa”. Mas justificou-se: “Nunca foi essa a intenção do Governo”.
Repetindo as justificações do secretário de Estado centrista, a deputada Cecília Meireles (CDS-PP) acusou os partidos da esquerda de levarem uma “conspiração” ao limite, argumentando que se o Governo quisesse ter manipulado os números teria lançado o simulador da sobretaxa em Março, quando houve um pico positivo na receita. “Em vez de nos estarmos a dedicar a teses conspirativas, talvez devamos dedicar-nos às teses da realidade”, ironizou a deputada centrista.
Certo é que só em Janeiro de 2016, quando forem divulgados os números dos 12 meses deste ano, se saberá se os contribuintes vão, ou não, poder contar com algum reembolso do montante que todos os meses é cobrado com a aplicação dos 3,5% de sobretaxa.