A Paris que eu vi chorar abraçada à vida
No dia 13, eu estive em Paris. É dever de todos nós, cantando de novo A Marselhesa, impedir que esta Europa agonize e morra
No passado dia 13 de Novembro, eu estava em Paris para participar num conjunto de sessões de promoção do livro e da leitura programadas pelo Instituto Camões. Ao fim da tarde desse dia, parti para Tours, em cuja Universidade Rabelais e num recinto amplo era esperado para falar da importância do acto de escrever. As primeiras notícias que me chegaram, a 250 quilómetros da capital, eram contraditórias e preocupantes, porque envolviam o jogo de futebol amigável entre a França e a Alemanha, disparos de metralhadoras à entrada de bares e restaurantes, embora ninguém falasse ainda da tragédia do “Bataclan”. Todos tentavam saber um pouco mais, incluindo sobre familiares e amigos que se encontravam em Paris nessa noite de temperatura amena.
A noite foi de atenção permanente ao que os canais de televisão diziam e de grande preocupação com a evolução da situação nas horas seguintes. O discurso comovido de François Hollande foi tocante e mobilizador. Sabia-se ainda muito pouco sobre quem matara e quem morrera e sobre as causas da barbárie que lançara o terror numa capital que secularmente simboliza os valores da liberdade, da esperança e da criatividade. Quem teria morrido e porquê, assassinado à queima-roupa por gente bem treinada para destruir e para fazer descer a mancha negra do medo sobre a cidade dita da luz e da magia das coisas belas e perenes, muitas delas bem presentes nos museus que entretanto foram fechados ao público?
Foi decretado o estado de emergência e dito, como plena clareza, que a França estava em guerra e tudo iria fazer para impor a uma derrota justa e inadiável ao terrorismo assassino cuja origem estaria seguramente no seio do autoproclamado “Estado Islâmico”. No dia 14, no meio de uma enorme incerteza, que o cancelamento de uma sessão com alunos e professores duramente impusera, consegui regressar a Paris. Havia poucos táxis, muitos militares nas ruas, pessoas em silêncio evitando abordar o assunto que há 24 horas abalava o mundo. Os restaurantes estavam fechados e havia zonas da cidade por onde não se podia circular. Ainda era cedo para falar de medo ou de combatividade quando, casa a casa, ainda se escrutinavam presenças e ausências num fim-de-semana de tensa emotividade e expectativa.
Lembrei-me então daquilo que especialistas na análise do fenómeno terrorista definem como “narcisismo trágico” e que se traduz na necessidade de se conseguir dar a maior notoriedade possível ao acto de destruição, recompensa sangrenta de quem mata, destrói e deseja cruelmente que tal se saiba para intimidar. Os terroristas tinham cumprido plenamente esse objectivo. Embora se desconhecessem os seus nomes e alguns tivessem sido abatidos no “Bataclan”, após terem assassinado cerca de 90 pessoas, eles eram os protagonistas absolutos do horror dessa noite de Novembro, tendo conseguido levar a magnífica Paris a pôr um joelho por terra, ferida pela revolta e pela dor e a tentar mostrar de forma organizada e mobilizadora a sua combatividade, perplexidade e revolta. Os fabricantes do horror estavam a ganhar, por terem conseguido fazer do medo e da que paralisa e silencia, a regra e a lei sem lei do seu ódio destruidor. Os restaurantes estavam fechados e as ruas vazias. Os militares de serviço nas ruas, praças e esquinas davam à noite parisiense o timbre violento da ordem que se organiza para vencer o caos. Para grandes males, duros remédios. Também vi pessoas chorando discretamente e pondo os olhos no chão. O narcisismo trágico dos assassinos continuava a marcar pontos. Que outro dia, outros dias não tardassem a nascer.
Na manhã seguinte, muito cedo, antes de tentar garantir o voo de regresso a Lisboa, vi pessoas a fazerem jogging e outras com pequenos ramos de flores rumando aos locais da tragédia. A Paris da resistência, da alegria e da esperança comovida enchia o peito de ar e proclamava o seu pleno direito a não se render e condenar a resignação, coisa que só os fortes verdadeiramente conseguem. Paris voltaria a estar nas esplanadas e nas salas de concertos assim as portas se abrissem para a acolher em clara atitude de protesto e reencontro com o essencial da vida, essa vitalidade que ao longo de décadas sempre identifiquei com a cidade e com a sua população múltipla, diversa, curiosa e apaixonada, mesmo quando em Portugal não havia liberdade e democracia e ali teimosamente nos sentíamos livres e com alento de sobra para reconstruir a vida à medida dos valores que nos exaltam e mobilizam.
No Aeroporto de Orly, vi militares em uniforme de combate, para além dos activos elementos da Vigipirate, e percebi que o estado de urgência também ali deixava a sua inconfundível marca e ouvi alguém comentar em português: “Isto agora vai ser a doer”. Para salvar vidas e sonhos é preciso arrumar bem a casa com a serena firmeza de quem elimina o que corrói e envenena. Mas é também preciso perceber o muito que ajuda a fomentar o ódio e a destruir a razão. Que não lhes doam as mãos. Se o narcisismo é trágico, então, em nome da democracia e da liberdade, que ninguém possa sentir o júbilo de ter assassinado e destruído, muito menos em nome de Deus e de tanto ódio acumulado. Nunca, em mais de 40 anos de convívio frequente com a cidade que foi de Voltaire, de Camus, de Sartre, de Boris Vian, de Baudelaire, Rimbaud, Malraux e tantas e tantos mais, mesmo recordando o horror da presença hitleriana, pensei ver a mágica Paris a chorar de revolta pelos filhos perdidos, feridos, brutalmente arrancados à glória da vida. É dever de todos nós, cantando de novo A Marselhesa, impedir que esta Europa agonize e morra. Pois essa seria também a nossa aflitiva morte.
Escritor, jornalista e presidente da Sociedade Portuguesa de Autores