Morreu Paulo Cunha e Silva, o homem que mudou a Cultura do Porto
Vereador da câmara portuense sucumbiu a ataque cardíaco na noite de terça-feira. Tinha 53 anos. Autarquia decreta três dias de luto.
Viver depressa, mobilizar pessoas de diferentes áreas, fazer as coisas acontecerem e marcar a agenda cultural e mediática. Era este o programa de vida e de acção de Paulo Cunha e Silva (1962-2015). O facto de o fazer, muitas vezes, até à exaustão física poderá ter contribuído para um desfecho tão dramático quanto inesperado: morreu na madrugada de terça para quarta-feira na sua casa em Matosinhos, vítima de um enfarte do miocárdio agudo. Tinha 53 anos.
Na sua frenética agenda de vereador da Cultura da Câmara do Porto, acabara de fazer a abertura, ao final da tarde de terça-feira, no Museu de Serralves, da retrospectiva integral da obra de Manoel de Oliveira. Sentiu-se mal depois do jantar, foi assistido pelos amigos e pelo INEM, mas viria a falecer pouco depois. O óbito foi declarado às 00h15. Num curto comunicado emitido de manhã, o presidente da autarquia, Rui Moreira, anunciou que foram decretados três dias de luto na cidade. O corpo ficará em câmara ardente, a partir das 17h desta quarta-feira, no palco do Auditório Manoel de Oliveira, no Teatro Municipal Rivoli. Em comunicado, a Câmara do Porto explica que o teatro estará aberto durante toda a noite “a todos os que queiram prestar homenagem” ao vereador. Na quinta-feira, pelas 14h, o cortejo fúnebre seguirá até à Igreja da Lapa, onde se realiza a missa, pelas 15h. O corpo será cremado.
Na semana passada, numa correria entre os palcos do Teatro Rivoli e de outras instituições da cidade – Serralves, Teatro São João, Casa da Música –, Paulo Cunha e Silva andou a “ligar” as conferências do Fórum do Futuro, a invenção mais ambiciosa e mediática destes seus dois anos de mandato, e que este ano teve como tema a Felicidade – no final, dissera ao PÚBLICO que o fórum do próximo ano seria sobre a Ligação.
Paulo Cunha e Silva era, de facto, um homem da Ligação. Possuía uma capacidade invulgar de colocar em rede, de forma criativa, pessoas, objectos, lugares e situações. “Ele era um homem dos sete instrumentos, um aglutinador de pessoas. Tinha uma genuína e enormíssima curiosidade intelectual associada a uma inteligência e uma cultura invulgares”, testemunhou para o PÚBLICO Julião Sarmento, artista plástico que com ele se cruzou em diferentes palcos das artes.
Fernando Neves, ex-embaixador de Portugal em Roma, de quem Paulo Cunha e Silva foi conselheiro cultural entre 2009-12, realça também a sua capacidade de trabalho e de invenção de eventos e programas, “quase sem orçamento”. “Foi um dos mais brilhantes promotores da cultura portuguesa que conheci. Fez um trabalho extraordinário em Itália”, onde conseguiu “fazer chegar a obra de vários artistas portugueses aos mais importantes museus de Roma”, tendo-se também ocupado da promoção do cinema e de outras artes.
Personalidade forte, de “sólidas convicções” e com uma “tendência natural para o diálogo”, assim o descreve Artur Santos Silva, que o conheceu quando presidiu à Porto 2001 – Capital Europeia da Cultura, onde Paulo Cunha e Silva se distinguiu como programador, já depois de na década anterior ter deixado a sua marca com uma sucessão de colóquios interdisciplinares, entre Serralves e a Gulbenkian.
O actual presidente da Fundação Gulbenkian realça a continuidade do seu trabalho nos tempos mais recentes como vereador da Cultura da Câmara do Porto, onde conseguiu, “com muito pouco”, pôr várias forças e instituições culturais da cidade a dialogar. E conseguiu que esse diálogo desse “frutos claríssimos”.
Nos dois anos em que esteve à frente da vereação, cargo para que foi convidado pelo independente Rui Moreira, o Porto conheceu um renascimento cultural: quer com os muitos projectos que lançou, quer no intenso trabalho em rede com múltiplos agentes e espaços culturais da cidade. Numa entrevista ao PÚBLICO logo depois de ter tomado posse, Paulo Cunha e Silva disse que o Porto podia “ser um laboratório político-cultural para o país”. Um dos seus slogans era a vontade de transformar o Porto numa “cidade líquida”, movente, “onde tudo pode acontecer em todo o lado”. Entre as suas realizações, esteve também a devolução à cidade do Teatro Rivoli – e não será por acaso que a cerimónia fúnebre foi instalada no palco do teatro municipal.
“Paulo Cunha e Silva era uma pessoa que tinha uma visão completa da Cultura. Marcou profundamente a dinâmica cultural do Porto, onde havia quase um esquecimento”, disse ao PÚBLICO Luís Braga da Cruz, presidente da Fundação de Serralves, ainda visivelmente emocionado e “chocado” com a sua morte, já que poucas horas antes o tinha acompanhado na abertura da grande retrospectiva da obra de Manoel de Oliveira.
Braga da Cruz conta que no seu discurso de inauguração da mostra, organizada em conjunto por Serralves e a Câmara do Porto, Paulo Cunha e Silva disse que não se podiam dar mais nomes de ruas ao cineasta que morreu em Abril deste ano como forma de homenagem, mas sim “mostrar a sua obra para que a sua memória perdure”. “E nós, agora, temos de fazer a mesma coisa com a memória do Paulo, sem deixar esmorecer, sempre com mais energia”, defendeu o presidente de Serralves, que teve em Paulo Cunha e Silva “um interlocutor permanente”. “Não havia nada que fizéssemos em Serralves que ele não aparecesse; estava sempre presente, sempre atento, com sentido de oportunidade”.
Médico amador das artes
Nascido “acidentalmente” no Alentejo em 1962, filho de um juiz e de uma professora, Paulo Cunha e Silva viveu depois entre Braga e o Porto. Licenciado em Medicina e doutor pela Universidade do Porto, torna-se efectivamente conhecido pelo seu trabalho como programador da Porto 2001. A astrónoma Teresa Lago, que sucedeu a Artur Santos Silva como presidente da Capital Europeia da Cultura e é hoje secretária-geral da Sociedade Astronómica Internacional, confirma que ele foi uma das pessoas “essenciais” para a programação. “Ele era uma pessoa obviamente brilhante e excitante”, disse ao PÚBLICO, caracterizando-o como “uma espécie de vulcão em erupção constante de ideias interessantíssimas”.
Teresa Lago revela que ficou “muitíssimo feliz” quando soube que Cunha e Silva era o escolhido de Rui Moreira para assumir a pasta da Cultura, porque, argumenta, “criaram-se enormes expectativas de uma vida cultural numa cidade que estava tão carente, depois da seca enorme que tivera”. Com a morte prematura do vereador, a astrónoma não tem dúvidas de que ele teve “pouco tempo para concretizar “o que queria. “Ele tinha muitas ideias, não teve tempo suficiente”.
Substituir Cunha e Silva será, para a ex-presidente da Porto 2001, uma tarefa muito difícil. “Ele era da área da ciência, era médico, e tinha uma capacidade absolutamente extraordinária de cruzar interesses. Era uma pessoa única, muito particular e de uma enorme actividade intelectual”, disse.
Também Artur Santos Silva acha que esta não será uma substituição fácil. Mas considera imperativo que a câmara não deixe cair o trabalho por ele começado: “Pelo seu exemplo, pela sua memória, é preciso que o que ele fez – e como o fez – continue. É preciso que a cultura continue a ser uma prioridade da cidade, é preciso fazer mais, muito mais. Acredito que Rui Moreira e a vereação vão conseguir” (entretanto, o presidente da Câmara do Porto anunciou já ter assumido ele próprio o pelouro da Cultura).
José Barreiro, director do festival NOS Primavera Sound, recorda Paulo Cunha e Silva como um homem que “tinha do Porto a ideia de uma cidade europeia, contemporânea, moderna”, destacando, da sua acção como vereador da Cultura, “a devolução do Rivoli à cidade”. Realçando a “admiração e respeito” que “todos os agentes culturais tinham pelo seu trabalho”, lamenta também a sensação que agora fica de Cunha e Silva “não ter tido tempo de fazer tudo aquilo de que a cidade precisava”: “Lançou sementes e o Porto poderá colher mais tarde essa sementeira”.
O programador acentua que o vereador demonstrou que, “mesmo sem uma grande disponibilidade financeira para apoiar projectos culturais, devido às limitações orçamentais, é possível, através da motivação dos agentes culturais, fazer bastante com pouco”. Dá como exemplo da sua visão para a cultura a realização do Fórum do Futuro.
Antes de chegar à vereação da Câmara do Porto, Cunha e Silva foi director do Instituto das Artes entre 2003-05, a convite do então ministro da Cultura, Pedro Roseta. Num auto-retrato que traçou para a página no Facebook Porto Olhos nos Olhos, admitiu que esses “foram anos complexos”, em que teve três governos e três ministros – Maria João Bustorff e Isabel Pires de Lima, depois de Roseta. “Curiosamente, aquele de quem era mais amigo foi com quem tive mais problemas e com quem acabei por me demitir. Este deve ser o organismo mais complexo da administração pública portuguesa, porque nunca nenhum director-geral chegou ao fim do mandato, seja por ter saído ou por ter sido convidado a sair”, acrescentou.
Lamentando a morte de Paulo Cunha e Silva, e numa reacção a este diferendo, em texto enviado ao PÚBLICO, a ex-ministra Isabel Pires de Lima diz que esse rompimento institucional, acontecido por razões de “gestão político-financeira”, não a impedem de “valorizar o papel de destaque que como programador cultural Paulo Cunha e Silva teve na Porto 2001 e a dinâmica excepcional que soube trazer ao campo cultural portuense no desempenho das suas funções de vereador da Cultura”.
Com Rui Chafes em Matera
Mais bem-sucedida foi a sua já referida passagem pela Embaixada de Portugal em Roma, onde, entre inúmeras outras iniciativas, promoveu uma exposição de Rui Chafes nas igrejas rupestres de Matera, em 2011. “Foi talvez a nossa experiência de trabalho mais intensa”, diz o artista plástico. O seu empenhamento foi total e apaixonado, desde as primeiras visitas a Matera, em busca do local perfeito para a exposição, até à sua capacidade para agilizar as densas burocracias e obstáculos organizativos e financeiros que, permanentemente, se atravessavam no nosso caminho”, acrescenta Chafes, lembrando que mais recentemente, já este ano, fez para o projecto de arte pública que Cunha e Silva relançou para o Porto uma escultura, O meu sangue é o vosso sangue, para o Museu da Misericórdia, a dialogar com a famosa pintura Fons Vitae, da colecção da instituição.
A associar às suas funções de programador e responsável político, Paulo Cunha e Silva era professor associado de Pensamento Contemporâneo na Faculdade de Desporto da Universidade do Porto (UP). O trabalho teórico que produzia na área do pensamento contemporâneo passava pelo questionamento do lugar do corpo nas artes.
No domínio do debate de ideias, foram muitas as áreas do pensamento contemporâneo que lhe interessaram. Sempre disposto a cruzar as ciências – física, matemática, medicina, biologia – e as artes, o professor da UP ancorava boa parte das suas reflexões no lugar que cabia ao corpo no confronto com tudo o que o rodeava.
Na sua tese de doutoramento, publicada em livro – O Lugar do Corpo: Elementos para uma Cartografia Fractal (edição Instituto Piaget, 2007) –, Paulo Cunha e Silva apresenta uma “original” teoria do corpo, “muito inovadora”, que atravessaria boa parte da sua produção teórica e crítica, explica ao PÚBLICO José Bragança de Miranda, ensaísta e investigador da Universidade Nova de Lisboa, que desenvolveu vários projectos com o programador da Porto 2001, e que haveria de se tornar seu amigo. “O que lhe interessava eram as capacidades de expressão do corpo face à arte, à política, ao território. E, a partir deste interesse, que ele explora com todos os seus conhecimentos da medicina, da biologia, da astronomia e da matemática, ele cria uma nova teoria baseada no movimento, aquilo a que ele chama o ‘corpo motor’”, explica este sociólogo com obra publicada nos domínios da comunicação e da cultura. Um corpo “instável” que se descobre na relação com o mundo, a política, a arte, a cidade.
“O corpo de que ele nos falava partindo, por exemplo do [pintor americano Jackson] Pollock, é um corpo em expansão, motriz, que atravessa tudo. E ele era o melhor exemplo desse corpo, alguém com interesses múltiplos, que sabia pensar mas também sabia fazer, alguém habituado a passar por dentro das coisas, sem nunca se contentar com a posição do espectador.”
A sua maneira de pensar, e de pensar o território, a cidade, assentava na possibilidade de estabelecer redes, comunicações diversas, acrescenta o professor universitário, lembrando que, quando apresentava mais um dos seus projectos de cruzamentos interdisciplinares, Cunha e Silva dava muitas vezes a imagem do mapa do metro, com todos as suas estações, nós, linhas e derivações: “A rede é a sua maneira de pensar o mundo. E os mapas ajudam-no a criar várias cidades dentro da cidade real que ele conhece bem, vários percursos com paragens. É, de facto, como uma rede de metro, sendo que quem inventa o metro é ele, que está sempre a imaginar.”
A Bragança de Miranda assustava-o, por vezes, o entusiasmo avassalador do amigo perante a possibilidade de criar algo. As ideias atraíam-no, mas era a possibilidade de concretizar, de fazer, que mais o motivava. “O Paulo estava muito longe de ser um intelectual descarnado, etéreo. O Paulo não era só o que pensava, era o que fazia. Sei agora que essa entrega tinha riscos, tinha custos.”
Ao serviço da cultura
O vocalista dos GNR, Rui Reininho, conhecia há muito Paulo Cunha e Silva. “Já antes do Porto 2001 nos tínhamos reunido para realizar algumas iniciativas em conjunto”, recorda, antes de o descrever de forma curiosa. “Nestes tempos que temos vivido, vejo-o quase como um agente ao serviço de Sua Majestade da Cultura. Em vários filmes do 007, James Bond desaparecia numa queda inóspita ou algo semelhante e depois reaparecia. Este é um dos poucos casos em que gostaria que a reencarnação existisse.”
Abalado pela notícia – “é difícil acreditar que tenha morrido”, suspira –, lembra em Paulo Cunha e Silva alguém que “fazia da cultura um grande prazer”. Do seu trabalho recente na autarquia portuense, realça “as portas que abriu e as pontes que estabeleceu”, e faz uma analogia musical: “Creio que não havia uma nota que o Paulo não conseguisse dar. Desde barítono a contralto, descobriu todas as notas. Deixa uma série de iniciativas em andamento, portanto a sua voz ainda ecoa.”
Na memória, Reininho tem “a forma como ele passava dos assuntos ditos sérios para uma cascata de humor e boa disposição”, e um entusiasmo abnegado pelo trabalho cultural. “Não queria nem nome de rua, nem busto, a não ser que fosse um busto desnudo”, remata com humor. Afirma depois, muito a sério: “Nestas ocasiões, somos sempre egoístas e falamos da falta que nos fazem aqueles que partiram, mas, neste momento, e não diria isto de muita gente, sinto que podia ter ido eu. Fazia menos falta.”
Caracterizando-o como “uma pessoa fundamental da cultura portuguesa e mundial”, Guta Moura Guedes manifestou também “o absoluto choque” motivado pela notícia da morte de Cunha e Silva. Mas avançou, em declaração à Lusa, que o programa de inauguração da Experimenta Design, marcada para esta quinta-feira, entre o Porto, Matosinhos e Lisboa, vai ser mantido. “É a maior homenagem que lhe podemos fazer”, justificou.
Em Outubro, Paulo Cunha e Silva foi condecorado pelo Governo francês com o título de Cavaleiro da Ordem das Artes e Letras, pelo "seu serviço à Cultura".
O diplomata Fernando Neves sintetiza a sua figura multifacetada nestes termos: “Ele era um iconoclasta conservador e um reformista revolucionário”. E vê na sua morte “uma grande perda para o Porto e para o país, onde poderia vir a ser, sem dúvida, um grande ministro da Cultura”.
Texto actualizado às 20h00, com a correcção de uma citação do diplomata Fernando Neves, que se referiu a Paulo Cunha e Silva como um possível "grande ministro da Cultura", e não primeiro-ministro.
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