O admirável mundo estranho da electrónica no Semibreve

O segundo dia do festival Semibreve, em Braga, foi marcado pelo cancelamento de Tim Hecker, um dos cabeças-de-cartaz, mas Vessel ou Powell, estiveram muito bem num evento que, na quinta edição, esgotou, desafiou e conquistou.

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Powell no GNRation em Braga ALEXANDRE RIBEIRO/NFACTOS
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Powell no GNRation em Braga ALEXANDRE RIBEIRO/NFACTOS
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Vessel e Pedro Maia no Theatro Circo em Braga ALEXANDRE RIBEIRO/NFACTOS
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Klara Lewis no Theatro Circo em Braga ALEXANDRE RIBEIRO/NFACTOS
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A presença de público estrangeiro no Semibreve não é novidade, mas este ano aumentou consideravelmente. Bastava andar pelo centro da cidade para perceber. À quinta edição, o evento conquistou definitivamente um lugar especial no catálogo dos festivais nacionais e até no circuito internacional. A venda de bilhetes cresceu pelo menos 50%, os passes gerais aumentaram de 150 para 400 e esgotaram antes de o cartaz estar fechado. Os bilhetes diários também acabaram por esgotar. Vieram pessoas de Inglaterra, Alemanha, Polónia, França e Espanha, disse ao PÚBLICO Luís Fernandes, director artístico do festival.

Nos últimos meses o Semibreve teve bem mais do que 15 minutos de fama – e isso é uma das justificações para este crescimento. A atenção da imprensa internacional alastrou, com destaques em publicações e sites de referência como a The Wire, Fact, The Quietus, Dazed and Confused, Resident Advisor e Electronic Beats, sendo referido ao lado de festivais de Outono de topo, entre eles, o Unsound, o CTM Berlin ou o Simple Things.

Há vários factores de atracção apontados por público, jornalistas e músicos. Acontece numa cidade pequena, não é um festival desgastante, não tem concertos sobrepostos, toda a gente convive sem formalidades e tem ainda um programa de instalações artísticas. Para Roedelius, nome histórico da electrónica alemã, ligado ao krautrock dos Harmonia e dos Cluster, “Braga é uma cidade com uma atmosfera especial”. “É um tesouro, sobretudo para mim que gosto muito de igrejas e mosteiros. E é bom poder trocar ideias com outros músicos”, contou ao PÚBLICO.

Para Frances Morgan, jornalista da revista The Wire, é uma vantagem o cartaz não ser extenso. “Dá para ver tudo, sem pressas, e assim os músicos têm oportunidade de tocar durante mais tempo, de explorar mais.” Opinião partilhada por Matthew, australiano a viver em Berlim, referindo também o facto de os espaços do festival – Theatro Circo, GNRation e Casa Rolão – “serem únicos e diferentes do que é habitual em eventos de música electrónica”.

Luís Fernandes acredita que o Semibreve contribuiu para tornar Braga num sítio menos conservador, apesar de o jornal local ainda lhe perguntar “que tipo de gente é que vai a essas coisas”. “Programo alguns artistas complicados também para tentar quebrar barreiras, abrir horizontes, provocar”, diz Luís. Mas admite que este ano há menos experiências difíceis e potencialmente entediantes. “Acalmamos um bocado, mas sem fazer cedências na programação”, assinala.

Na noite de sábado um dos destaques foi Vessel (vulgo Sebastian Gainsborough, 24 anos). Mal entrou no palco do Theatro Circo partiu para o ataque com um embate de electrónica corrompida por ruído e distorção. Electrónica gangrenosa e abrasiva mas com um intenso apelo físico – e indo directo ao assunto, tirou a t-shirt, ficou de tronco nu até ao fim do concerto, movendo-se energicamente (sim, este rapaz consegue fazer a festa sozinho) perante uma plateia sentada que claramente preferia ter estado de pé.

Num festival de música electrónica aventureira e experimental, em que é habitual ver os músicos concentradíssimos a operar a maquinaria sem se mexerem muito, foi refrescante presenciar, ainda que de uma cadeira, a postura mais liberta de Vessel – sobretudo nas escaladas de tecno acelerado, degenerado e sufocante.

O britânico mostrou porque é um dos nomes cardeais da Tri Angle (juntamente com The Haxan Cloak e Clams Casino), editora essencial para se fazer uma cartografia completa dos caminhos mais entusiasmantes da electrónica recente. E o Semibreve mostrou mais uma vez que, apesar de não ser um festival perfeito, é capaz de desafiar o público, semear estranheza, alargar as nossas interpretações do que é e do que pode ser a música electrónica.

E isso é feito na companhia das artes digitais. O concerto de Vessel contou com o excelente trabalho visual do português Pedro Maia. Não foi uma mera projecção de imagens, foi um objecto fílmico em sintonia com a música – uma espécie de crossover entre o terror psicológico de Repulsa, filme de Roman Polanski, Marquês de Sade e ensaios de sadomasoquismo.

Antes, pelas 21h30, Klara Lewis protagonizou o primeiro concerto da noite. Não desiludiu. A compositora sueca, nascida em 1993 (e filha de Graham Lewis, um dos fundadores dos The Wire, nomes maiores do pós-punk), lançou o ano passado o disco de estreia, Ett, um trabalho bastante maduro e com uma identidade bem delineada. A sua música vive à base de escavações sonoras e de uma dinâmica entre texturas, motivos rítmicos subterrâneos e detritos noise.

Ao vivo ganha uma maior fluidez: apesar de às vezes cair demasiado na abstracção e na aleatoriedade, Lewis consegue criar em concerto uma narrativa de pequenas ficções onde destabiliza e reorganiza as origens dos sons (sejam eles produzidos, samplados ou gravações de campo), esculpindo música sombria, complexa mas sedutora.

Alguns percalços

Houve bons concertos no segundo dia mas nem tudo correu bem. Tim Hecker foi cancelado, perdendo-se assim um dos cabeças-de-cartaz, o que debilita, inevitavelmente, um festival de pequena escala e em que artistas menos conhecidos estão em maioria. Devido à reorganização do alinhamento, o concerto de Die Von Brau (Sérgio Faria) aconteceu à noite, no Theatro Circo, e não à tarde na Casa Rolão, como previsto.

O horário e o espaço (um edifício barroco do século XVIII) inicialmente programados teriam sido mais adequados à sessão de electrónica ambiental e cósmica do produtor português, que na segunda parte da actuação entrou numa deriva um pouco inconsequente. Apesar das falhas registadas, vale a pena acompanhar o percurso de Die Von Brau, que integra uma nova geração, muito recomendável, de produtores de música electrónica nacional, ao lado de nomes como Marie Dior, Lake Haze, Rap/Rap/Rap ou Trikk.

O programa de sábado do festival arrancou às 15h30 na Casa Rolão, mais exactamente na belíssima livraria Centésima Página. À volta de uma pequena mesa com chávenas de chá, Frances Morgan, jornalista e editora da revista The Wire, conduziu uma conversa com Hans-Joachim Roedelius, que abrilhantou o primeiro dia do Semibreve num concerto em parceria com músicos portugueses.

Bem-humorado e humilde (quando nos volta a encontrar nas ruas de Braga, acompanhado pela mulher, chama por nós), o músico de 81 anos foi contando episódios da vida pessoal e profissional, uma verdadeira montanha-russa: foi preso por ter tentado escapar da RDA, foi fisioterapeuta de celebridades nos anos 60, deu concertos de doze horas com os Cluster, criou uma comunidade de nudistas, trabalhou com Brian Eno e Michael Rother. Pena a ausência de microfones ter dificultado, muitas vezes, a audição plena da conversa. Mas ainda assim louvemos a iniciativa: é importante programar este tipo de encontros em festivais, que deviam ser também um espaço para pensar e discutir a música e quebrar as barreiras entre público e artistas.

Para encerrar o segundo dia do festival, no GNRation, uma escolha acertada: Powell.  A reacção entusiasta do público confirmou-o. Fundador da londrina Diagonal Records e um dos produtores mais inventivos em actividade, faz tecno musculado, rugoso e triturado, sem nunca perder a audácia rítmica enquanto racha os sons sem dó nem piedade e sempre em contacto com a música industrial (há aproximações claras aos Suicide).

O público entregou-se à dança, mas a uma dança que finta constantemente o ritmo biológico, que provoca curtos-circuitos – no Semibreve é pouco comum haver formas tipificadas de música de dança. Ouviram-se temas obrigatórios como So We Went Electric e o novo single Insomniac, com um sample da voz de Steve Albini (que quando foi contactado por Powell aproveitou para destilar o seu ódio à música de dança num email entretanto tornado público e, inclusive, em placard publicitário).

Antes de Powell, o GNRation recebeu Peder Mannerfelt, metade dos experimentalistas Roll The Dice. O festival terminou este domingo com actuações de Oren Ambarchi, que já colaborou com nomes como Fennesz, Sunn O))) ou John Zorn, e da dupla Takami Nakamoto & Sebastien Benoits.

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