Um Nobel para o diálogo que salvou a revolução na Tunísia
Grupo de organizações da sociedade civil ajudou o país a sair da paralisia política que ameaçava o berço da Primavera Árabe. Nobel da Paz "é uma grande alegria para a Tunísia" e "uma esperança para o mundo árabe"
“É uma grande alegria e orgulho para a Tunísia, mas também uma esperança para o mundo árabe. É uma mensagem de que o diálogo pode conduzir-nos na direcção certa”, reagiu Houcine Abassi, secretário-geral da União Geral Tunisina do Trabalho (UGTT), a histórica e poderosa central sindical que foi a força motriz do agora laureado Diálogo Nacional Tunisino. Integrando também a confederação patronal UITCA, a Liga Tunisina dos Direitos Humanos (LTDH) e a Ordem dos Advogados, o quarteto foi criado no Verão de 2013 para mediar o diálogo entre os islamistas do Ennhada, então no Governo, e os partidos da oposição, encerrados numa disputa que tinha paralisado o processo de transição.
O momento era explosivo – dois políticos de esquerda tinham sido friamente assassinados no espaço de poucos meses por radicais islâmicos, a oposição boicotava os trabalhos da Assembleia Constituinte, as greves sucediam-se. No Egipto os militares tinham acabado de derrubar Mohammed Morsi, o Presidente islamista contestado nas ruas, na Síria a revolução tinha dado há muito lugar a uma sangrenta guerra civil, a Líbia afundava-se na ingovernabilidade.
“Num momento em que o processo de democratização estava em risco de colapsar totalmente estas quatro organizações da sociedade civil agiram a uma voz para, com a sua autoridade moral, salvar e encorajar avanços”, explicou à AFP Kaci Kullmann Five, a presidente do Comité Nobel norueguês, o mesmo que pela manhã surpreendeu o mundo ao decidir premiar “o contributo decisivo” dado pelo grupo “para a construção de uma democracia pluralista”.
O diálogo não foi fácil, nem isento de armadilhas, mas dois meses depois da sua criação, o grupo encabeçado por Abassi conseguia que todos partidos assinassem, em directo nas televisões, um documento que estipulava as etapas para a conclusão do processo de transição. Peça-chave nesse roteiro era a demissão do desgastado Governo do Ennhada, e a sua substituição por um executivo de tecnocratas, bem como a aprovação de uma nova lei eleitoral e, sobretudo, a conclusão dos trabalhos da Assembleia Constituinte.
Os frutos do diálogo foram colhidos em 2014, ano que começou com a aprovação de uma nova Lei Fundamental – um documento inclusivo e moderno, que alia a herança islâmica e as reivindicações seculares – e culminou, em Dezembro, com as primeiras presidenciais democráticas da história do país, que deram a vitória a Béji Caïd Essebsi, antigo ministro de Habib Bourguiba, o pai da independência, e Ben Ali. O Nidaa Tounès, partido que criou juntando figuras do antigo regime a empresários e políticos de várias áreas, venceu as legislativas de Outubro, mas a bem do compromisso chamou o Ennhada para o governo.
Nova visibilidade
Com as rédeas do poder entregues, o quarteto saiu de cena no início deste ano, o que contribuiu para que a surpresa do anúncio feito em Oslo fosse ainda maior. A edição online do jornal tunisino La Presse escreveu que, quando as primeiras mensagens chegaram à redacção, todos pensavam que se tratasse de uma piada – o mundo afinal esperava um Nobel da Paz mais mediático, fosse o Papa Francisco ou a chanceler alemã Angela Merkel.
O Comité Nobel preferiu, no entanto, dirigir de novo os olhares do mundo para a Tunísia, quando o entusiasmo com as revoluções árabes deu lugar ao cepticismo e só o terrorismo no país parece interessar ao noticiário internacional. “Este Nobel é um pão abençoado para um país que tem um défice de imagem e que esperava por um milagre”, escreveu o jornalista Lotfi Ben Sassi no La Presse. Em Março, 22 pessoas morreram num ataque contra o museu do Bardo, em Tunes; três meses depois um homem armado matou 38 pessoas numa praia de Sousse. O Estado Islâmico, que tem na Tunísia o seu maior pólo de recrutamento, reivindicou os dois atentados que arrastaram o turismo, grande motor da economia, para uma crise sem precedentes.
“É certo que que a Tunísia enfrenta desafios significativos na arena política, económica e de segurança. Mas é por isso que é tão importante e oportuno virar hoje os holofotes para aquilo que ali foi conseguido por oposição a vários outros países”, acrescentou Kullmann Five, dizendo esperar que o prémio “ajude a salvaguardar as conquistas e a servir de inspiração a outras”.
Um exemplo
Houcine e os outros dirigentes do quarteto querem que o Nobel seja partilhado por todos os tunisinos. “Esta é uma homenagem aos mártires da Tunísia democrática”, afirmou, emocionado, o dirigente sindical, ao lembrar os jovens mortos na revolução, elogiando também a disponibilidade dos partidos para o compromisso. “É um orgulho para toda a Tunísia, que prova que é o diálogo que salva o país das crises, não as armas”, acrescentou Abdessattar Ben Moussa, presidente da LTDH.
É esse exemplo que o Comité norueguês quis premiar, dizendo esperar que os sucessos da transição tunisina “sirvam de inspiração aos que querem promover a paz e a democracia no Médio Oriente, no Norte de África e no resto do mundo”. Uma expectativa repetida nesta sexta-feira por muitos activistas e dirigentes políticos, mesmo entre aqueles que há muito deixaram de olhar para a Tunísia ou para a vizinha Líbia, aceitaram o novo poder egípcio ou apoiam as facções armadas na Síria.
O Nobel da Paz “pertence a todos os que fizeram nascer a Primavera Árabe e se esforçam por preservar os sacrifícios de tantos”, resumiu o secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon, sublinhando que o trabalho do quarteto tunisino é “uma inspiração para a região e para o mundo”. Graças aos seus esforços e ao sentido de compromisso dos partidos “a Tunísia conseguiu evitar a decepção e as esperanças que marcaram de maneira trágica” as outras revoluções. Ou, como afirmou a também candidata Merkel, este Nobel é “a recompensa merecida” aos que “mantiveram viva a ideia de que um povo que rejeitou a ditadura merece melhor do que uma nova ditadura”.