O Quarteto mais um
A Tunísia mostra como são erradas as teorias sobre a incompatibilidade entre o Islão e a democracia.
É necessário afirmar, no entanto, que a escolha teria sido mais exemplar se tivesse contemplado igualmente Rached Ghannouchi, o líder do partido islamista democrático que negociou com o quarteto os compromissos necessários ao sucesso da transição.
Na Tunísia, com o Ennahda, tal como no Egipto, com a Irmandade Muçulmana, as verdadeiras forças de alternativa aos regimes autoritários foram os partidos islamistas, que por isso venceram as primeiras eleições livres. Mas tanto num caso como noutro, uma parte da elite e sectores ligados aos antigos regimes recusaram-se a aceitar os resultados eleitorais. Esta situação criou uma grave polarização maligna na sociedade que, no caso da Tunísia, foi alimentada por intelectuais e políticos franceses, com uma concepção radical da laicidade, considerando que a vitória do Ennahda era “a vitória da contra revolução“, como escreveu Jean Daniel em editorial do Nouvelle Obs.
A polarização no Egipto criou as condições para o golpe militar de Julho de 2013, que interrompeu o processo democrático. No caso tunisino, a polarização foi ultrapassada pela acção do Quarteto, composto por organizações da sociedade civil – associações cívicas, de empresários, advogados e defensores dos direitos humanos – sob a liderança da UGTT, a União Geral dos Trabalhadores, que já tinha desempenhado um papel decisivo na revolução que derrubou a ditadura de Ben Ali. O papel do Quarteto foi particularmente significativo quando, no seguimento da repressão brutal contra os Irmãos Muçulmanos no Egipto, sectores ligados ao antigo regime pensaram que tinha chegado a altura de eliminar o Partido Ennahda, tanto mais que contavam com o apoio de uma parte da elite laica liberal, que temia mais os islamistas que os defensores de Ben Ali. Esta situação agravou-se quando os laicos radicais atribuíram aos islamistas responsabilidades pelos atentados contra personalidades laicas de esquerda, fazendo uma amálgama entre as diferentes correntes islamistas. Em paralelo, os trabalhos da Assembleia Constituinte prolongaram-se mais do que o previsto, devido à dificuldade de encontrar um consenso entre islamistas e não islamistas.
O Quarteto assumiu então a procura de um consenso entre liberais laicos, cuja representação assumia, e islamistas democráticos. Foi particularmente neste contexto que o papel de Rached Ghannouchi foi – como continua a ser – crucial. Nas várias conversas que tive com ele durante a transição tunisina, sempre afirmou que a sua ambição era conciliar o islamismo politico com a democracia, defendendo uma interpretação plural do Alcorão. Exilado em Londres durante a ditadura de Ben Ali, foi aí que reflectiu sobre a trágica experiência do partido islamista argelino, a FIS, quando, em 1992, venceu as eleições na Argélia. Crítico da incapacidade demonstrada pela Irmandade Muçulmana egípcia em fazer compromissos e alianças com os sectores laicos, levou o Ennahda a aliar-se com dois partidos laicos – um viria a assumir a Presidência da República, ficando o outro à frente da Assembleia Constituinte. Esta opção levou o Ennahda a aceitar abandonar o governo, após a proclamação da Constituição, em prol da formação de um governo de tecnocratas, que preparou as eleições.
O Quarteto encontrou em Ghannouchi o interlocutor necessário para garantir uma constituição democrática avançada e a aquiescência dos sectores mais radicais do Ennahda. Dias depois da votação da Constituição, numa sexta-feira, Ghannouchi contou-me que tinha predicado numa mesquita de Túnis e tinha explicado que a universalidade dos direitos humanos, tal como a liberdade de consciência religiosa, estão inscritas no Alcorão.
Há quem diga que deveria ter sido o Quarteto mais dois, a receber o prémio Nobel, numa referência ao papel desempenhado na transição pelo actual Presidente da Tunísia, Béji Caïd Essebsi, popular entre os sectores anti-islamistas, nomeadamente entre os herdeiros de Bourguiba, e com quem, no momento mais grave da crise, no verão de 2013, Ghannouchi se encontrou em Paris e negociou a transição, no contexto de diálogo nacional promovido pelo Quarteto.
Para o sucesso da transição tunisina, importa igualmente sublinhar que a maioria dos atores externos apoiou a acção de mediação do Quarteto, como foi o caso da União Europeia e dos seus Estados membros. Na Embaixada de Portugal em Túnis encontrei um deputado anti-islamista – que, no seguimento do golpe no Egipto, tinha feito apelos à dissolução da Constituinte – que afirmou que tinha sido precisamente num almoço na mesma embaixada que tinha compreendido que não tinha o apoio dos europeus, o que o tinha levado a concluir que a sua posição não era democrática.
A Tunísia mostra como são erradas as teorias sobre a incompatibilidade entre o Islão e a democracia e demonstra a necessidade de diferenciar entre as diferentes correntes islamistas. Só assumindo estes pressupostos poderão os europeus evitar cair na armadilha dos que, como Bashar al-Assad, os querem fazer embarcar num conflito contra os que defendem a liberdade, em nome do combate aos extremistas do ISIS. E, igualmente importante, só assim poderão contrariar o discurso islamofóbico que se banalizou na Europa e que é uma ameaça à democracia europeia.
A consolidação da democracia na Tunísia ainda enfrenta enormes riscos, quer os que têm origem na vizinha Líbia, de dois governos e mil milícias, quer internamente, com o agravamento da crise social, ainda mais potenciada pela fuga dos turistas e pelas tendências sectárias de sectores do actual poder, como a lei antiterrorista demonstra.
A União Europeia tem um papel importante a desempenhar na consolidação militar da fronteira líbio-tunisina e no apoio económico à Tunísia, acções fundamentais para permitir que o exemplo da Tunísia mantenha, neste momento de desespero e guerra no Médio Oriente, acesa a esperança das revoluções democráticas de 2011.