Uma portuguesa na Palestina: “A nossa arma é a arte”
Micaela Miranda é directora pedagógica do Freedom Theatre. Vive e trabalha no campo de refugiados de Jenin, na Palestina, desde 2008. Todos os dias, faz parte de histórias de revolução num território ocupado. Pode o teatro salvar vidas? Ela acredita que sim.
Chegou a Jenin em 2008 com uma pergunta na cabeça. Para que serve o teatro? Deu a cara, pintada de branco, no spot publicitário da escola profissional de teatro que ia abrir. No primeiro workshop de introdução ao espírito clown, que orientou com o grupo amador de rapazes Bad Boys, apresentou-se numa frase. “Eu sou actriz como vocês, vim cá para saber a verdade”.
Falámos com Micaela, uma portuguesa na Palestina, em Santa Maria da Feira, durante as suas férias em casa da mãe. Bebemos chá durante a conversa de mais de uma hora numa manhã de Verão. Dentro de dias, Micaela regressa a Jenin, onde encontra sentido para o que faz, enquanto houver uma causa, enquanto houver coisas para fazer.
Lá os dias são intensos. Há, na verdade, uma certa normalização dos dias, mas a ocupação é violenta e obriga a refazer planos, a redefinir estratégias. “Em Jenin, encontrei muitas respostas não só pessoais, mas também sobre como as coisas funcionam no mundo”, conta. “Há sempre fogo para continuar”. Lá construiu uma família com Nabil Alraee, director artístico do Freedom Theatre. Tem uma filha e está novamente grávida de outra menina. Depois de algumas semanas de descanso, está pronta para voltar ao campo de refugiados onde, todos os dias, faz parte de histórias de revolução. Todos os dias, questiona-se a realidade à volta de um território ocupado por Israel há mais de 66 anos.
Este teatro tem liberdade no nome, uma oliveira que serve de sombra a muitas conversas. O Freedom Theatre é um espaço em que crianças e jovens podem expressar-se livremente e em igualdade, imaginar novas realidades, desafiar limites sociais e culturais. Micaela trabalha com eles, com rapazes e raparigas que querem ser profissionais no teatro e que acreditam que a arte é uma ferramenta de transformação do tecido cultural. “O trabalho da arte é questionar, não é dar respostas, ou pregar um certo tipo de sermão. Estamos lá para refletir, para sermos um espelho da sociedade e a sociedade ser o nosso espelho. E nós andamos ali a perceber e a dialogar sobre vários assuntos de formas criativas, porque é essa a essência do ser humano, a criação”, refere. Parte-se da liberdade individual para alcançar a liberdade do colectivo. “As histórias de revolução pessoal são o princípio de uma revolução social. Vemos isso como uma pequena comunidade que somos, participamos no tecer desse tecido cultural. A nossa arma é a arte”.
Habituada ao movimento e expressão corporal, áreas em que se especializou, Micaela foi percebendo os gestos. “Vê-se perfeitamente nos corpos das pessoas que são corpos sem voz, que é preciso gritar para poder tirar tudo daqueles sentimentos e emoções que estão reprimidos”. Valorizam-se narrativas pessoais para mostrar que, sublinha, “uma narrativa pessoal está mais próxima da verdade do que uma narrativa governamental”.
O autocarro da liberdade
O dia no Freedom Theatre começa às oito da manhã com café para todos, do contabilista à mulher da limpeza. Em círculo, falam do que se vai fazer, transmitem-se avisos, partilham-se informações. Às 9h, os alunos começam a limpar o enorme pavilhão que é o teatro. Às 9h30, começam as aulas. Não são propriamente aulas, são momentos que têm objectivos performativos. Valoriza-se a prática. “A melhor forma é aplicar o conhecimento e ir trazendo o conhecimento enquanto se está a praticar”. Os alunos da escola profissional são rapazes e raparigas - o mais novo tem 16 anos - do campo de refugiados de Jenin, de vilas à volta, de Belém, de cidades a mais de 100 quilómetros. O teatro tem uma guest house que, neste momento, alberga três alunos. É um teatro que não fecha portas, está aberto 24 horas por dia, com staff nuclear de 15 pessoas, dois artistas residentes. Há sempre, pelo menos, 30 pessoas a trabalhar. Na escola, estão oito alunos no 2.º ano. No curso profissional, só aceitam alunos de três em três anos. “O West Bank [Cisjordânia] é demasiado pequeno para estarmos a produzir tantos actores. Com as nossas capacidades só conseguimos dar foco a um grupo e preferimos assim”.
As actividades incluem aulas e ateliers para crianças e jovens e diferentes formas de expressão. Há cinema e hip-hop e o teatro é sempre a base. Contam-se histórias às crianças para falar sobre determinados assuntos. Ouve-se a voz dos pequenos participantes. A história do Capuchinho Vermelho, na perspectiva do lobo mau, serve para falar da verdade, da importância de ouvir os dois lados da mesma história. Fala-se de amor com uma história sem palavras, só com as mãos de um rapaz e de uma rapariga. Estimula-se o pensamento crítico. Histórias tradicionais, histórias inventadas, histórias livremente adaptadas. Tudo é possível. “Trabalhamos constantemente a questão do género, não de uma forma militante. Ou seja, trabalhamos com rapazes e raparigas igualmente, não há distinções, têm um espaço onde criam em conjunto. Tem de haver diálogo entre os géneros e a falta desse diálogo resulta, às vezes, em violência, em discriminação, em todas as cores e nuances de violência”, refere.
O Freedom Theatre tem escrita criativa, um grupo de multimédia que se junta aos actores. Durante dois anos trabalhou com 15 professores em Jenin para mostrar como se utiliza a expressão dramática para ensinar. E todas as peças terminam com uma discussão. Sempre. A plateia pode falar. “É uma forma fácil de obter feedback, mas também de ouvir a voz”. Em Jenin, as discussões são sobretudo educativas. “Há uma terceira geração em ocupação e é preciso haver muito diálogo”. Usa-se o playback theatre, baseado no teatro de improviso, em que o público conta as suas histórias que são improvisadas pelos actores. “Para ouvirmos histórias não podemos chegar e pedirmos que contem histórias. Temos de chegar e contar a nossa história”. Há aqui um fio vermelho. O fio das histórias que se contam e que podem alterar quem as conta e quem as escuta. “O fio vermelho que vai de coração para coração”. O playback theatre é utilizado no Freedom Bus, o autocarro da liberdade do teatro de Jenin, que circula por toda a Cisjordânia, para recolher e transmitir histórias, desenvolver actividades comunitárias, facilitar a catarse de experiências traumáticas. O objectivo é chegar a todos os lados da Palestina histórica. Este autocarro é também um veículo de resistência cultural que dá acesso a membros da comunidade internacional e a líderes da comunidade palestiniana que, dessa forma, têm acesso exclusivo a informação, muitas vezes, inacessível. E há coisas que acontecem quando esse autocarro parte. Um pouco por todo o mundo, por exemplo, saíram artigos, notícias e documentários com relatos da ocupação transmitidos por quem a sofre na pele. Duas escolas nas comunidades de Vale do Rio Jordão foram reconstruídas. O Freedom Bus e uma coligação de 30 organizações que trabalham no sector de emergência sanitária e da água nos territórios ocupados da Palestina firmaram uma parceria para escutar directamente as necessidades das pessoas.
No livro Arte e Comunidade, coordenado por Hugo Cruz e que reúne testemunhos sobre projectos comunitários, lançado recentemente, Micaela Miranda assina o capítulo Teatro nos Territórios Ocupados da Palestina: Resistência Cultural – Um Teatro de Liberdade. “No Freedom Theatre costumamos dizer: há três formas de ocupação – a israelita; a palestiniana; e a que impomos a nós próprios. O nosso teatro é um grupo de artistas e pessoas criativas que se juntaram para criar um espaço seguro para uma geração de jovens que vivem sob estes diferentes tipos de ocupação, sem qualquer perspectiva ou esperança no futuro. O nosso principal papel é descobrir e criar uma plataforma para a educação alternativa, criando novas possibilidades e promovendo a imaginação”, escreve. E recorda várias acções realizadas e que surgiram nas sessões de resistência cultural: demonstrações pelos direitos dos prisioneiros, limpeza colectiva das ruas do campo de refugiados durante a greve dos funcionários das Nações Unidas, idas em grupo a tribunais para mostrar apoio a prisioneiros políticos, reconstrução do parque infantil de Jenin, distribuição de roupa e brinquedos a famílias numerosas do campo de refugiados.
O espaço e o tempo do conflito
Pode o teatro salvar vidas? “Acredito que o teatro pode salvar vidas, mas o teatro não pode estar frente a uma bala”. Micaela desenha com as mãos no ar um gráfico do conflito, em que uma coisa é o espaço, outra é o tempo. O teatro nunca está no ponto central, em que espaço e tempo do conflito acontecem ao mesmo tempo. “O trabalho que fazemos é muito perto desse ponto. Andamos, muitas vezes, a passinhos de bebé, a ver como vamos fazer isto, como vamos abordar aquilo, às vezes temos de mudar completamente estratégia”.
Adiaram, várias vezes, estreias de peças por haver um mártir no campo. A qualquer momento, as actividades podem parar. “Estamos perto em tempo e em espaço do conflito, temos sempre de arranjar maneira ou de nos distanciarmos em espaço ou de dar um bocadinho de tempo”, acrescenta.
Em Maio e Junho deste ano, o Freedom Theatre fez uma tournée no Reino Unido. Esteve em 11 cidades, teve espectáculos com casa cheia, apresentou uma peça baseada no cerco da igreja de Belém em 2002. Histórias de pessoas que viveram 37 dias numa igreja cercada. Nabil Alree escreveu a peça depois de uma investigação de ano e meio. A voz de Jenin ultrapassa fronteiras. “Os jornalistas, de repente, já não escrevem terroristas escrevem membros da resistência, em vez de falarem de conflito falam de ocupação”, repara Micaela.
O Freedom Theatre está a lançar o projecto de uma companhia profissional e a preparar uma tournée na Índia, em parceria com uma companhia de teatro de rua indiana – os ensaios arrancam em Novembro e a peça estreia no dia 1 de Janeiro do próximo ano. Em 2016, ano em que o Freedom Theatre faz 10 anos como organização, haverá várias actividades em Jenin ao longo do ano. Uma conferência sobre resistência cultural e um festival com várias companhias farão parte do programa. Em 2017, partirá em tournée europeia e Portugal fará parte da rota.
Para que serve o teatro? A pergunta andava, e ainda anda, na cabeça de Micaela Miranda. Encontrou parte da resposta no campo de refugiados de Jenin. Chegou ali em 2008 com uma formação de teatro da Academia Contemporânea do Espectáculo do Porto, um curso da École Internacionale de Théâtre Jacques Lecoq de Paris, trabalhos em vários países - França, Brasil, Itália -, a criação de uma companhia na Irlanda, alguns projectos sociais. Foi na Irlanda, quando preparava um projecto sobre a adolescência, que o Freedom Theatre lhe surgiu num artigo de uma revista sobre esse teatro na Palestina. Uma rapariga palestiniana queria ser encenadora porque tinha conhecido o teatro, abandonando a ideia de ser mártir. Micaela queria conhecer esse teatro, a colega de trabalho dizia-lhe que era a sua cara. Não se enganou. No dia em que leu o artigo, recebeu um convite de colegas israelitas, da turma da escola de Paris, para substituir uma actriz numa peça, uma paródia sobre o exército israelita. Aceitou o convite. Tinha a possibilidade de conhecer os dois lados e de ir ao Freedom Theatre. Encontrou-se com Juliano Mer Khamis, então director do teatro, em Telavive.
Antes de partir, Micaela perguntou de que precisavam. Levou consigo dois irlandeses, um director de cinema e um editor, e uma câmara comprada com fundos angariados na Irlanda. Ficou em casa de Juliano. Deu a cara pelo spot de promoção para a escola profissional de teatro que o Freedoom, em colaboração com a Universidade Árabe Americana, queria abrir. “Estávamos a trabalhar com grupos de amadores, o grupo dos rapazes, o grupo das raparigas, mas estava a chegar a uma altura que a organização precisava de criar profissionais que pudessem continuar a assegurar as actividades”, recorda. A actriz portuguesa pintou a cara de branco, andou em cima de um táxi no meio de Jenin, coisa nunca vista por ali, para o spot publicitário da escola. Juliano pediu-lhe para ficar a ensinar teatro físico e movimento, área da sua especialização. Disse que ficava um ano.
Em 2011, Juliano Mer Khamis, director do Freedom Theatre, foi assassinado à porta do teatro por alguém nunca identificado.Uma morte inesperada, pouco tempo para pensar. “Era óbvio que iríamos continuar por respeito e por amor ao Juliano e ao que fazíamos”. Não foi fácil. “Juliano era um líder, uma pessoa carismática. Ele próprio incorporava a situação: filho de mãe judia e pai palestiniano. Dizia que a era a prova da coexistência”. “Hoje, olhando para trás, o que não nos matou tornou-nos mais fortes”, refere.
Micaela Miranda, que neste momento também faz parte de uma companhia de commedia dell’arte da Holanda, vive um dia de cada vez. Confessa que é difícil imaginar o futuro. “As coisas mudam de uma forma tão rápida, o ambiente político, não sabemos o que vai acontecer, se vão continuar a bombardear ou não. Certo é que ainda tenho muito trabalho para fazer em Jenin até poder descansar”.