Não deixar calar Calais

Só um reforço da capacidade de resposta europeia poderá ajudar a solucionar a gravíssima crise migratória de que Calais é também um rotundo emblema.

A crise de Calais veio demonstrar a uma França, sempre relapsa, e a um Reino Unido, cada vez mais apostado num programa demagógico, que afinal a questão não é puramente italiana, grega, espanhola, maltesa ou cipriota. A Mancha veio manchar definitivamente a explicação simples e simplista de um dos mais graves senão o mais grave problema europeu da actualidade: a crise migratória.

2. Primeiro, é necessário revisitar a posição britânica e, em particular, a ambiguidade do primeiro-ministro David Cameron. Não é difícil compreender que ele se encontra politicamente numa situação muito delicada, porque tem a pressão escandalosamente xenófoba do UKIP e de uma parte relevante do Partido Conservador. Xenofobia que, por razões de pura “correcção política”, se tem atido, aliás, cínica e hipocritamente, aos emigrantes europeus sempre os polacos, mas hoje muito vistosamente os romenos e os búlgaros. E sintomaticamente, conhecendo-se bem os dados sociológicos da imigração no Reino Unido, nada ou quase nada é dito sobre os migrantes provindos das antigas colónias (por exemplo, do triângulo Paquistão, Índia e Bangladesh). Como é óbvio, não se faz aqui qualquer apologia da destrinça entre boa ou má imigração, em função da proveniência étnica ou geográfica. E, muito menos, aquela que fez David Cameron, quando em letra de forma, na imprensa europeia, escreveu sobre a necessidade de acolher os bons “agentes” da liberdade de circulação (ricos e qualificados) dos maus “agentes” da mesma liberdade (pobres e indiferenciados). O ponto é tão-só o de lembrar, aqui e agora, mais uma vez, que, na discussão britânica muito marcada por Farrage e pelo UKIP há também e inelutavelmente um preconceito anti-europeu, que, diabolizando essa imigração, com toda a hipocrisia (e, seguramente à boa maneira xenófoba, apenas numa primeira fase), dissimuladamente esconde toda a restante. Talvez só neste fim-de-semana, Philip Hammond, titular do Foreign Office, tenha vindo reconhecer isso abertamente ao fazer um “ataque” directo aos migrantes africanos…

3. Cameron tem sido ambíguo e escorregadio, primeiro, por tentar fazer do problema uma falha puramente francesa. Depois, por pôr na sombra aquilo que a imprensa inglesa revelou últimos dias: há máfias inglesas organizadas na passagem ilegal de migrantes, que ganham enormes quantias de dinheiro. Pior ainda, quando tenta explicar que a procura do Reino Unido se baseia na ideia de que aí se vive melhor do que em qualquer outro país europeu. Basta conhecer as estatísticas da procura da Alemanha ou da Suécia, para perceber quão inverosímil essa tese “proto-nacionalista” se afirma. Olvidando-se até o papel da legislação inglesa, seja pela generosidade do seu sistema de benefícios sociais (que depende basicamente de uma opção britânica), seja pela inexistência do “cartão de identidade” e da protecção anónima que essa velha garantia dá a qualquer “ilegal”. Finalmente, por muito dramática que se apresente a situação na fronteira galo-britânica, a verdade é que a tragédia não tem paralelo com os números do Mediterrâneo e que a quantidade de pessoas de que falamos na zona de Calais é drasticamente inferior à que entrou nas fronteiras gregas e italianas nos últimos meses. Calais mesmo na visão de Cameron não é uma falácia. É um problema sério e delicado que o Governo britânico e o Governo francês têm nos braços. Mas pôr mais demagogia ou entrar no jogo político puramente interno não vai ajudar a resolvê-lo.

4. Por isso mesmo na semana dos cartazes em que tanto haveria a dizer sobre o PS e a credibilidade de António Costa , volto aqui ao que já escrevi duas vezes neste semestre neste mesmo espaço (a 20 de Janeiro e a 21 de Abril). É necessária, mais do que nunca, uma política comum para as migrações. Que cuide prioritariamente do acolhimento humanitário com condições mínimas de dignidade. Que trate, a seguir, da organização decente de campos de migrantes, em que possam viver transitoriamente, ver a sua situação analisada, acabar por saber se há ou não capacidade de receber a sua força de trabalho ou, em alternativa, em que pressupostos há-de ser feito o seu repatriamento. Que combata todas as redes de tráfico e exploração da mão de obra humana e que patrulhe, de modo efectivo e não puramente simbólico, os canais críticos dos movimentos migratórios. E que cure obviamente do diálogo com os países de origem e com os países de trânsito, sem exclusões ou preconceitos apriorísticos. E finalmente que alinhe pelas políticas de ajuda ao desenvolvimento que podem contribuir de alguma maneira para estancar estes movimentos e para estabilizar os seus fluxos.

Tudo isto, naturalmente, há-de reconhecer-se, num dos momentos de maior tensão geopolítica nas fronteiras leste, sudeste e sul da Europa. O que pode ditar a necessidade de equacionar movimentos de carácter militar ou para-militar. Ao contrário do que pensa o “establishment” britânico, tão cioso dos 800 anos da Magna Carta, só um reforço da capacidade de resposta europeia poderá ajudar a solucionar a gravíssima crise migratória de que Calais é também um rotundo emblema. Calais é um sintoma, mas não podemos deixar calar Calais.

SIM e NÃO

SIM. Católicos recasados e Papa Francisco. As declarações do Papa, bem antes do Sínodo, dão mais um sinal da abertura de coração da Igreja. Assim, o saibam compreender os bispos sinodais.

NÃO. PS e a saga dos cartazes. Cartazes proto-religiosos, que reconhecem a culpa do PS na crise, que falam de desemprego quando este cai e que “manipulam” cidadãos fotografados dão um retrato da fiabilidade com que o PS de Costa prepara as eleições.

Eurodeputado (PSD)

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