O rato-preto da ilha da Berlenga é inocente?
Dezenas de biólogos e investigadores acusam a Sociedade Portuguesa para o Estudo das Aves, promotora do LIFE Berlengas, de proferir uma sentença de morte ao mamífero antes de provar a culpa.
O LIFE Berlengas arrancou em Junho do ano passado, com um financiamento de 1,4 milhões de euros para quatro anos, metade pagos pela Comissão Europeia. A SPEA e os parceiros – Instituto de Conservação da Natureza e Florestas (ICNF), Câmara de Peniche, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa e Escola Superior de Turismo e Tecnologia do Mar – pagam a outra metade. O objectivo principal é “repor os valores naturais do arquipélago” – formado pela ilha da Berlenga (a única visitável) e por vários ilhéus e rochedos (Estelas e Farilhões) – situado a 5,5 milhas náuticas (cerca de dez quilómetros) de Peniche, classificado como reserva da Biosfera pela UNESCO em 2011. Como? Erradicando as espécies que, segundo os promotores, estão a pôr em causa o ecossistema.
“Está provado que o rato-preto come as crias das aves marinhas vivas”, argumenta Luís Costa, director executivo da SPEA (representante em Portugal da BirdLife International). "Em todo o mundo já foram realizados mais de 1000 projectos que provam o efeito negativo do rato sobre os ecossistemas e que a sua erradicação tem impacto positivo”, afirma, dando como exemplo projectos de conservação em curso na Madeira (onde o LIFE Recover Natura, um projecto do Parque Natural da Madeira em parceria com a SPEA, prevê também a erradicação de coelhos e murganhos) e nos Açores.
No entanto, uma análise realizada na Berlenga em 2013 pela própria SPEA não registou “qualquer evento directo de predação” do rato-preto sobre uma das aves marinhas mais emblemáticas da ilha, a cagarra (Calonectris diomedea borealis). O estudo detectou apenas “uma grande actividade de rato-preto dentro ou muito próximo dos ninhos de cagarra”, perto das crias, “demonstrando um interesse inequívoco nas mesmas”. “É possível que, em anos de menor disponibilidade alimentar, os ratos tenham uma maior actividade predatória sobre as crias de cagarra”, concluiu-se.
Embora tenha estatuto de conservação desfavorável, a população de cagarra não está a regredir da Berlenga, único local na costa continental portuguesa onde a espécie nidifica: nos últimos 20 anos passou de 200 casais para perto de 1000, segundo a SPEA.
Num documento explicativo do projecto, os promotores sustentam que é necessário actuar “de forma preventiva” para “evitar a irreversível extinção” das aves marinhas, como já aconteceu com o airo (Uria aalgae) – associando também a ausência do roque-de-castro (Oceanodroma castro) na Berlenga à presença do rato-preto – e “por questões de saúde pública”, uma vez que a reserva é visitada por milhares de pessoas anualmente. "A comissão científica deste projecto tem avaliado a documentação existente e considera não haver nenhuma prova científica que sustente a proteção específica destas populações [de rato]”, diz a SPEA.
Ninguém sabe ao certo quando e como é que o rato-preto, originário do Sudeste da Ásia, chegou à Berlenga. As referências mais antigas à presença da espécie na Europa datam do século VIII. Isolado na ilha, onde terá chegado com ajuda do homem, alojou-se em galerias escavadas no solo, de onde foi expulso no continente pela ratazana-do-esgoto (Rattus norvegicus), seu arqui-inimigo. Os poucos estudos feitos sobre a população da Berlenga, e referidos no documento da SPEA sobre o projecto, admitem que aquela pode ter-se adaptado à vida insular e reconhecem mesmo diferenças entre o crânio dos indivíduos residentes na ilha e o dos que vivem no continente, sugerindo a necessidade de aprofundar o conhecimento sobre os primeiros.
Luís Costa afirma que os técnicos da SPEA estão a fazer estudos da dinâmica da população, cuja conclusão está prevista para Maio do próximo ano, e que foi pedido um estudo de genética à Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa. "As coisas não são feitas de ânimo leve. Se virmos que o rato é realmente importante para o ecossistema e que não pode ser erradicado, abortamos a operação", admite. O ICNF, responsável pela gestão da reserva, apoia o extermínio. "A erradicação e o controlo do rato-preto foi ponderada no passado, nunca tendo sido desenvolvida" porque exige "um grande volume de trabalho e de verbas" só possíveis em projectos de grande dimensão, diz Maria de Jesus Fernandes, directora do Departamento de Conservação da Natureza e das Florestas de Lisboa e Vale do Tejo.
Mas os argumentos não convencem dezenas de biólogos, alguns dos quais dedicados há décadas ao estudo do ecossistema do arquipélago. “Estão a inverter o ónus da prova”, contesta António Teixeira, biólogo e antigo director da reserva natural, cargo que ocupou durante 11 anos. “O rato já tinha uma sentença de prisão perpétua na ilha. Porquê transformá-la numa sentença de morte, antes de se provar a culpa?”, questiona, reforçando que “é preciso estudar a população” antes de definir qualquer medida.
O especialista em aves marinhas é um dos mais de 30 signatários de um documento que será entregue aos partidos com assento parlamentar, exigindo a suspensão da "proposta de extermínio" feita pela SPEA. A lista inclui sobretudo biólogos, professores catedráticos e jubilados, investigadores com trabalho em diversas áreas da biologia em Portugal e no estrangeiro. Um deles é Luís Vicente, biólogo com “40 anos de Berlenga”, dez como director da reserva, doutorado em evolução e especialista em ecossistemas insulares. “Quando queremos brincar aos deuses, o que já em si é perigosíssimo, pelo menos que essa brincadeira seja alicerçada em trabalhos que justifiquem a intervenção sem margem para dúvidas”, defende.
Num debate promovido recentemente em Lisboa pelo eurodeputado José Inácio Faria, do Partido da Terra-MPT, Luís Vicente confessou-se “chocado” com algumas medidas previstas no LIFE Berlengas. “Os ecossistemas insulares são muito frágeis, dependem do equilíbrio entre as espécies, e a população de ratos parece estar em equilíbrio com as restantes que habitam na ilha”, afirma, sublinhando o papel importante dos roedores no arejamento do solo e na disseminação de sementes. Além disso, o biólogo condena o método previsto para a erradicação – segundo ele, envenenamento por pesticidas com acção anticoagulante que provocam hemorragias até à morte lenta do animal – e alerta para o eventual perigo para outras espécies que se alimentem dos cadáveres. Luís Costa contrapõe garantindo apenas que "não serão usados venenos que afectem outras espécies ou que possam causar problemas de saúde pública".
"É irresponsável e criminoso", acusa o biólogo Raúl Santos, ex-técnico superior da reserva e ligado às Berlengas há "mais de 20 anos". "Os mamíferos são tão importantes como as aves" naquele ecossistema, defende. Um estudo feito em 1988 sobre o rato-preto da Berlenga, citado no plano de ordenamento da reserva, destaca "as características singulares" do animal, que lhe conferem "um elevado interesse científico". "Ninguém sabe se o ADN do rato está já diferente do do continente, ou se pode ainda evoluir para uma subespécie diferente. Vamos dar cabo disto?", questiona por seu turno o botânico Jorge Paiva, da Universidade de Coimbra. "A perda desta população, significaria a perda de uma 'livraria' de informação genética que poderia vir a esclarecer muitos mecanismos evolutivos", alertam os autores do documento As propostas de extermínio de espécies na Berlenga Grande e as dúvidas que estas suscitam.
Outras erradicações
Mas o rato-preto não é o único “criminoso” da Berlenga a enfrentar a pena de morte. A sentença é extensível ao coelho-bravo (Oryctolagus cuniculus), outra espécie introduzida (talvez para caça, no reinado de D. Afonso V, no século XV), acusada de destruir o coberto vegetal e alterar a dinâmica do solo, prejudicando a conservação dos habitats e da flora das ilhas. O director da SPEA adianta que está a ser estudada, em alternativa à erradicação, a "captura por armadilha do maior número de coelhos vivos, e a transferência para zonas do continente onde sejam mais úteis em termos de conservação da natureza" - como por exemplo para assegurar a sobrevivência do lince-ibérico, no Alentejo.
O chorão-das-praias (Carpobrotus edulis) está também na lista de espécies a extinguir, para ser substituído por espécies autóctones como a arménia-das-berlengas (Armeria berlengensis). Segundo Luís Costa, os técnicos da SPEA já começaram em Junho do ano passado a arrancar o chorão "em bandas estreitas para evitar a erosão".
Embora admitam que o LIFE Berlengas tem muitas acções válidas – o projecto inclui, por exemplo, a construção de um pequeno centro de interpretação na Berlenga e melhorias nos trilhos existentes –, os opositores criticam as "generalizações abusivas" feitas pelos promotores e a criação de uma comissão científica “enviesada”: dela fazem parte seis especialistas, quase todos com experiência no estudo de aves marinhas. Apenas um – Paulo Oliveira, director do Serviço do Parque Natural da Madeira – trabalha na erradicação e no controlo de vertebrados introduzidos em ilhas.
O MPT vai interpor uma providência cautelar pedindo a suspensão do projecto “até que exista uma fundamentação credível para aquelas medidas”, disse José Inácio Faria. Existe já uma petição pública online com o mesmo objectivo. O Bloco de Esquerda, Os Verdes e o PAN (Pessoas-Animais-Natureza) também já se manifestaram contra o projecto.