1. Guarulhos. Ainda se queixam os cariocas de que o Galeão é longe. Uma pessoa aterra em Guarulhos e enfrenta a falência para chegar a São Paulo. Aterrei às 5h30, às 6h30 estava cá fora, está na média da burocracia. Às 6h30 era de noite, e bem Inverno, aí menos 15 graus do que em Miami, de onde involuntariamente eu vinha. Procurei o ónibus mais barato, é o 257 para o metro Tatuapé, cinco reais mais uns tostões. Se não houver trânsito, uma hora depois a gente chega. Não sei se havia porque adormeci ao lado de um caipira. Bom que Tatuapé era a última paragem, já estava bem de dia. Só faltava chegar à minha casa emprestada, a vários bairros de distância e sem metro. Ao chegar, tive de persuadir o porteiro de que não era uma sem-tecto porque o porteiro do turno anterior esquecera-se de o avisar. Passava das 8h30 quando apanhei a chave debaixo do vaso no sexto andar. Demorei tanto de Guarulhos a São Paulo como do México a Miami.
2. Jordi Burch, meu camarada de viagem ao longo de milhares de quilómetros de Amazônia, estava a montar uma exposição de fotografia (para o Consulado Português) chamada Havia Sol e Éramos Novos, frase do nosso camarada Martim Ramos, um dos retratados. André Liohn, fotojornalista que eu não via desde 2011 na Praça Tahrir, estava a montar uma exposição de fotografia (para a Caixa) chamada Revogo, sobre violência no Brasil. O par de guerrilheiros mais gaúcho de São Paulo, Veronica Stigger e Eduardo Sterzi, estava a montar uma exposição de fotografia (para o SESC) chamada Variações do Corpo Selvagem — Eduardo Viveiros de Castro, fotógrafo. O próprio Eduardo Viveiros de Castro estava essa noite em São Paulo por causa disso, e foi assim que à lendária mesa do Sujinho, acumulando vários jantares num só, eu era a única carnívora não envolvida na montagem de uma exposição de fotografia.
3. Jordi nunca se cruzara antes com Viveiros de Castro mas de certa forma já o conhecia, porque enquanto ele lia o Grande Sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa, naquela nossa interminável navegação entre o Pará e o Amazonas, eu lia A Inconstância da Alma Selvagem, de Viveiros de Castro, e nas pausas trocávamos figurinhas.
4. O André, paulista do interior, nunca se cruzara com nenhum dos comensais, à excepção de Jordi. Morou fora do Brasil durante vinte anos, exactamente metade da vida. “Agora estou morando no Copan”, contou ele. O Copan é o mais célebre projecto residencial de Oscar Niemeyer em São Paulo, um prédio em forma de onda no centro da cidade, com seis blocos e mais de mil apartamentos. Isso dá tantos moradores que há uma chance razoável de qualquer pessoa conhecer alguém que mora no Copan. Mas antes de eu subir a Consolação até ao Sujinho, escrevera-me um carioca exilado em São Paulo, e editado em Portugal, que também estava a morar no Copan, o João Paulo Cuenca. Então, num espaço de meia hora, o André era o segundo conhecido meu que morava no Copan. Qual a probabilidade de, na maior cidade da América do Sul, dois conhecidos nossos que não se conhecem entre si serem vizinhos de prédio?
5. Não apenas: com seis blocos à escolha, eles moravam no mesmo, um no 21.º, outro no 23.º, descobrimos no dia seguinte, junto ao Café Floresta, onde Cuenca marcara comigo. O André desceu para nos encontrar, eu perguntei se poderia ver o apartamento dele, e acabámos a ver o do Cuenca também. Pequenos apartamentos, com um armário a dividir sala e quarto, vista vertiginosa para os cumes de São Paulo. Mas agora é canja, tudo (mais ou menos) recuperado, dureza mesmo era nos anos 90 quando, por exemplo, você pegava o elevador e um travesti esfaqueava o namorado do seu lado, disse Cuenca. Aí teria dado um livro gore. Mas como ele está prestes a publicar um romance em que já rebenta com o Rio de Janeiro talvez São Paulo possa esperar.
6. Do Copan saímos pelo Centrão, aquela mistura de casarões grafitados, favela arranha-céus, largos de palmeiras, mercado de rua, ruas com nomes como Aurora, Boticário, avenidas que estão em canções, como a Ipiranga e a São João. Mais tarde ou mais cedo, se não fosse no Copan, André e Cuenca iam cruzar-se aqui, ambos conhecem os restaurantes semiclandestinos, as mesquitas que de fora parecem garagens. Pisamos na entrada de um prédio, escada estreita, grade na porta: o peruano que Cuenca queria fechou. Damos a volta até outro que entretanto virou um fenómeno hipster, dizem os rapazes, pondo-se de fora do fenómeno. Continua aberto e cheio no andar de cima. O menu explica: pratos a 20 reais, 5,75 euros, nesta nova era da desvalorização. Quando vim morar no Brasil, eu dividia o custo por dois: 2200 reais de aluguer-e-contas, uma pechincha carioca, eram 1100 euros. Agora seriam 630, quase uma divisão por quatro.
7. Cuenca tinha de seguir para uma reunião num daqueles prédios ex-abandonados e convidou-me a ir ver o lugar. Porque se tratava do novo projecto de Bruno Torturra, um jornalista que ficou célebre nas manifestações de 2013, quando a Mídia Ninja, que ele co-fundara com repórteres e activistas, apareceu como a voz da rua, em streaming, online. Até Caetano Veloso foi lá ser fotografado com pano preto na cara. Muitos cortes depois, não sei que é feito dos ninjas neste Inverno de 2015, mas Torturra está aqui, num lounge com decoração retro e computadores Apple. O projecto agora chama-se Fluxo e é uma espécie de redacção em campanha, por exemplo, pela despenalização das drogas. Não há elevador, é preciso subir a pé, em baixo trabalha uma designer, a meio toca um alarme e no topo fica a Balsa, terraço das melhores festas de São Paulo, diz quem conhece.
8. Outro carioca por estes dias em São Paulo era o meu amigo de casa-e-pucarinho Marcio Debellian, que estranhamente não estava a montar nenhuma exposição de fotografia, nem a dormir no Copan, mas nessa noite ia ver os Metá Metá. Há um ano e meio eu entrevistara o guitarrista da banda, Kiko Dinucci, para um trabalho sobre arte e política, sem ter tido a sorte de o ver ao vivo. Além de tocar violão, guitarra, compor, cantar, Dinucci desenha e tem um documentário sobre o deus africano Exu. O show aconteceria na Serralheria, um espaço na Lapa. A Lapa paulista, fabril, não tem nada a ver com a Lapa carioca, boémia (muito menos com a lisboeta, queque). Também não conheço um espaço parecido com a Serralheria no Rio, misto de bar, produtora cultural, palco alternativo. O mais parecido, que será a Comuna, não é tão parecido. Se eu tivesse continuado em São Paulo mais uma semana, teria shows todas as noites, incluindo Ava Rocha, que há um ano meio, quando fiz esse trabalho sobre arte e política, foi capa do Ípsilon.
9. A outra voz dos Metá Metá é a musa black power Juçara Marçal, que vai do metal à morna assim tão habilmente. Plateia em pé sabendo as letras, dançando como num terreiro afro-punk-samba-torto-iorubá. Duas levas de encores e no fim Kiko nem tinha discos para vender, só um livrinho chamado Suruba para Colorir, em que ele participa. Bem a propósito do que aconteceu com a capa que desenhou para Encarnado, o disco a solo que Juçara lançou no ano passado e o iTunes não quis pôr à venda porque o desenho é o peito nu de uma negra. Já ao balcão do bar, Kiko conta como se deu ao trabalho de pesquisar, e fotos de semipeladas brancas no iTunes são mato. De resto, o Brasil tem um problema geral com mamilos e com cor. Estávamos nisto quando apareceu um japonês que veio de Tóquio para São Paulo, sabe tudo sobre música brasileira e é actor do último filme de Kiko, sobre ex-cinemas de São Paulo, incluindo seis na Liberdade, o bairro japonês.
10. No dia seguinte caminho até um restaurante-loja de vinis onde nunca entrei, o Conceição Discos, e a mesa está junto a uma parede toda desenhada por Kiko Dinucci. A sugestão do lugar foi do meu comensal paulistano, Ronaldo Bressane, que aliás veste uma camiseta da Balsa, o tal terraço das festas. Mais tarde, noutra ponta de São Paulo, o Jordi há-de confirmar que, sim, são as melhores festas. Pelo meio, vou enfim ao atelier de Nuno Ramos, que também está a preparar uma exposição, mas de pintura. Contarei como foi quando ler os Sermões, que ele publicou este ano. Têm uma capa de que o iTunes também não ia gostar, mas não é mamilo, não.