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Portalegre celebrou Dia da Criança com polémica simulação de motim

Crianças divididas entre polícias e manifestantes para simular situação de motim. Autarquia diz que houve um "propósito pedagógico".

Fotografia que foi publicada pelo município de Portalegre e que foi entretanto apagada
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Fotografia que foi publicada pelo município de Portalegre e que foi entretanto apagada DR
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Estas são outras imagens, que ainda estão disponíveis no Facebook da autarquia dr
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Ainda na segunda-feira, a Câmara de Portalegre adicionou um novo álbum na sua página no Facebook. Mais de cem fotos mostram como as crianças do município passaram o dia que lhes é dedicado, este ano no jardim da Avenida da Liberdade. Esta terça-feira, uma das fotografias tinha sido retirada do álbum mas isso não impediu que fosse replicada várias vezes nas redes sociais, onde vários comentários criticam a acção que a PSP desenvolveu com os mais pequenos.

“Que vergonha é esta?!! Estão a educar as crianças para um estado policial??? A ensiná-las que o direito à manifestação deve ser combatido?”, pode ler-se num dos comentários. “Não tiveram inteligência para arranjar actividades que incutissem civismo e valores às nossas crianças?”, questiona outra utilizadora.

A presidente da Câmara de Portalegre, Adelaide Teixeira, interpreta a indignação expressa nas redes sociais, sobre a simulação com crianças com 6 e 7 anos, como um sinal evidente do aproveitamento político que se pretendeu fazer de um momento da festa do dia da criança que “teve apenas um fundamento e um propósito pedagógico”.

A autarca, numa conversa telefónica com o PÚBLICO, reconhece que a publicação da fotografia “não foi feliz” pelas muitas leituras que suscita, mas que acaba por não retratar “o contexto do que realmente se passou”, pois “ os miúdos compreenderam perfeitamente o que era o bem e o mal”.

Adelaide Teixeira explica que cada gesto que realçava os momentos mais emotivos da simulação de motim, suscitava a intervenção de um agente da autoridade que instava as crianças a comentar o sentido das suas atitudes quer os que faziam o papel de “polícias de intervenção”, quer as que assumiam a sua contestação à autoridade, atirando-lhes com papéis. Ambos os casos, descreve a autarca, serviram ao agente da autoridade para questionar as crianças sobre a atitude incorrecta de atirar papéis a outras pessoas.

No final do “motim” as crianças foram instadas a apanhar os papéis do chão e a colocá-los no cesto e depois inverteram-se as funções com os “manifestantes” a tomarem o lugar dos agentes da autoridade. Repetida a cena, apanhados mais uma vez os papéis, os personagens do jogo entre o bem e o mal, terminaram “abraçados e aos beijinhos”.

Estiveram envolvidas no Dia Mundial da Criança realizado em Portalegre perto de 1500 crianças e muitas dezenas de pais, professores e educadores. “Todos entenderam perfeitamente que se tratou de uma acção pedagógica sem que fosse visível o mais pequeno gesto de desagrado”, assegura a presidente do município.

Para a presidente da Câmara de Portalegre o mal-estar patenteado nas redes socais “não passa de uma falsa questão, porque, na realidade não há questão”, frisando que a PSP já realizou este tipo de iniciativa noutros pontos do país sem que tivesse suscitado o “mais pequeno sinal de contestação ou de crítica”.

Adelaide Teixeira reforça que estas actividades “são validadas por pedagogos e realizadas por profissionais”. Além do mais a PSP “é uma entidade acima de qualquer suspeita” e a Câmara de Portalegre “nunca iria dar cobro a uma situação que violentasse quem quer que fosse”, concluiu a autarca.

O PÚBLICO contactou a PSP de Portalegre que se escusou a comentar o tema que retratado, garantindo que a direcção nacional da PSP iria assumir publicamente uma posição. A Associação Socio-Profissional da Polícia, também não quis tecer qualquer comentário sobre o assunto, alegando desconhecer os pormenores. 

Manuel Nobre, dirigente do Sindicato dos Professores da Zona Sul, adiantou, por sua vez, ao PÚBLICO que os professores envolvidos nas festividades do Dia Mundial da Criança “não se aperceberam do que se terá passado”, por conseguinte “não tiveram grande envolvimento” na encenação do “motim” que, para o sindicalista, suscita “várias leituras do ponto de vista ético”.

"Não muito feliz", foi como a Associação de Pais do Agrupamento de Escolas do Bonfim, em Portalegre, considerou a açcão desenvolvida pela PSP. "Acabou por ser uma acção não feliz dentro de um contexto educativo. Algo que tinha uma perspectiva pedagógica e que se fez no bom sentido do termo acabou por ter um resultado não muito feliz", lamentou o presidente da associação à agência Lusa.

José Polainas indica que a associação irá agora "tentar perceber se houve incómodos generalizados por parte de alguns pais ou encarregados de educação e tentar perceber o que se está a passar". Na tarde desta terça-feira, a associação não tinha recebido "qualquer tipo de queixa".

Especialistas consideram acção "disparatada"
“A acção é completamente disparatada, não tem explicação. Poderá haver uma boa intenção por parte da PSP, que pretende apelar à sensibilização das crianças para o seu trabalho, mas a iniciativa não tem qualquer espécie de sentido”, observou ao PÚBLICO José Morgado, professor de Psicologia da Educação no Departamento de Educação do ISPA – Instituto Universitário em Lisboa.

O psicólogo lamenta que se tenha colocado “crianças a simular situações de violência", mas considera que, apesar de a fotografia poder ser perturbadora, a acção ali representada “não vai deixar nenhuma espécie de marca” nas crianças que participaram. “Vão ver isto como uma actividade lúdica”, indica José Morgado, sublinhando, no entanto, a importância de “acções ajustadas aos processos educativos”, o que, neste “caso, não aconteceu”.

O professor do ISPA sublinha que as crianças “aprendem por imitação e observação do que se passa à sua volta”. “Não podemos ter as crianças numa redoma mas também não podemos criar situações fomentadoras ou de incentivo a actividades que elas reproduzam e que sejam negativas”. Neste caso específico, José Morgado considera que “passar a mensagem de que existe violência entre cidadãos e a polícia não representa uma vantagem para o conhecimento que as crianças têm da autoridade”.

A questão de se tratar de um conflito não é problemática, até porque, explica, o psicólogo, as “crianças vivem desde muito novas com situações de conflito, como quando disputam os brinquedos”. “Estas situações de conflito fazem parte do crescimento, mas este [simulação de motim] não é o mesmo tipo de conflito, foi-lhes colocado, não estamos a falar da conflitualidade do dia-a-dia”, reforça. 

O pediatra Mário Cordeiro partilha dessa opinião. “Uma coisa é as crianças brincarem aos ‘polícias e ladrões’, com regras inventadas por elas e dentro da criatividade e fantasia próprias da idade; outra é os adultos quererem forçar uma reprodução da vida real, sobretudo em casos deste tipo envolvendo as crianças”, reagiu ao PÚBLICO.

O pediatra considera que a acção conjunta da autarquia com a PSP, “mesmo que com a melhor das intenções, foi muito desprovida de senso” e questiona a razão que levou adultos a “trazer forçadamente as crianças para o mundo deles” e a “mostrar a crueza do quotidiano sem salvaguardar áreas que devem ser reservadas aos profissionais”. “Uma coisa é ter o estojo da 'Drª Brinquedos' [personagem de animação], para cuidar das bonecas, outra é simular um bloco operatório com sangue e instrumentos cirúrgicos”.    

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