“Se o cabelo mexer, não pode jogar pelos pretos”

A escravatura e o racismo foram os temas fortes do fHist - Festival de História, que juntou em Braga investigadores brasileiros e portugueses, mas a entrada dos jornalistas no terreno dos historiadores também motivou debates animados.

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Uma missa campal celebrada em 1888 no Campo de Santana para dar graças pela abolição da escravatura. Esta última, fotografada por Antônio Luiz Ferreira, é uma das imagens que ilustram o recém-lançado livro Brasil: Uma Biografia Antônio Luiz Ferreira
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A Fazenda Quititi, no Rio de Janeiro, em 1865 George Leuzinger/Acervo Instituto Moreira Salles

Nascido na cidade brasileira de Diamantina, em Minas Gerais, o fHist atravessou o Atlântico, nesta sua terceira edição, para uma primeira etapa em Braga, que decorreu até sábado em vários espaços da cidade, com o quartel-general montado no edifício Gnration, onde decorreram as sessões de trabalho.

Sob o título confortavelmente genérico de Diálogos Oceânicos, a variedade de tópicos discutidos nas doze mesas propostas poderia parecer um tanto desconcertante para quem estivesse habituado a colóquios disciplinares mais convencionais: de uma abordagem das políticas do Marquês Pombal no Brasil, trazida pelo prestigiado brasilianista inglês Kenneth Maxwell, a um relato de como nas favelas do Rio de Janeiro o movimento hip-hop se tem servido da cultura para conquistar cidadania, um case study apresentado pela socióloga Heloísa Buarque de Holanda, de uma brilhante intervenção da antropóloga e historiadora Lilia M. Schwarcz, mostrando como a escravidão criou o racismo e como este se perpetua no Brasil dos nossos dias, a um inesperado libelo do sociólogo Albertino Gonçalves, da Universidade do Minho, contra o uso de imagens chocantes nos maços de tabaco.

Ainda assim, talvez possa dizer-se que a escravatura e o racismo foram os tópicos dominantes neste encontro. Da Escravidão ao Racismo teria sido, de resto, o tema da mesa de abertura, na quinta-feira, se contingências de última hora não tivessem obrigado a organização a adiar a sessão para o dia seguinte. Mas também surgiu recorrentemente a questão do relacionamento entre historiadores e jornalistas no estudo do passado, que teve uma sessão específica na sexta-feira - Universos Literários: A História pelas Lentes dos Historiadores e dos Jornalistas -, mas que foi aflorada em diferentes mesas, designadamente nos longos períodos reservados ao debate com a assistência, geralmente bastante concorridos e animados.

Índio, judeu e bicheiro
Se o papel de Portugal e do Brasil na história da escravatura tornava a escolha do tema bastante natural, já a importância dada pelo fHist à discussão dos papéis respectivos que poderão caber a historiadores e jornalistas no estudo da história deve ser entendida à luz de uma idiossincrasia brasileira. É claro que há também vários jornalistas portugueses que têm publicado livros de história, mas o fenómeno está longe de adquirir a dimensão que alcançou no Brasil ao longo da última década. “Há jornalistas que têm publicado livros excelentes, melhores do que os de muitos historiadores”, dizia ao PÚBLICO, num intervalo dos trabalhos, o historiador inglês Kenneth Maxwell, lembrando o exemplo pioneiro de Elio Gaspari, que entre 2002 e 2004 publicou quatro volumes sobre a ditadura brasileira que são hoje consensualmente considerados estudos de referência.

Sintomaticamente, todos eles são citados na bibliografia da nova história do Brasil lançada por Lilia Schwarcz e Heloisa Starling, Brasil: Uma Biografia, cuja edição portuguesa, da Temas e Debates e do Círculo de Leitores, foi lançada em Braga durante o festival. Outro jornalista cujas obras as autoras consultaram para escrever esta inovadora história do seu país é Lira Neto, biógrafo de José Alencar e Getúlio Vargas.

Mas se Gaspar e Neto são jornalistas cujo trabalho historiográfico tem uma relevância reconhecida mesmo nos meios académicos, nem por isso são necessariamente os melhores exemplos para ilustrar o fenómeno do jornalista-historiador no Brasil. Caso bastante mais mediático é, por exemplo, o de Laurentino Gomes, que lançou no Brasil em 2007 o livro 1808, que se propunha contar “como uma rainha louca, um príncipe medroso e uma corte corrupta enganaram Napoleão e mudaram a História de Portugal e do Brasil”. O livro esteve meses na lista dos mais vendidos, e o jornalista voltou à carga com 1822 e 1889 (já publicados em Portugal). No total, vendeu mais de um milhão de exemplares.

Se os historiadores acham que a colaboração dos jornalistas é bem-vinda, mas que as funções de uns e outros não devem confundir-se, os jornalistas brasileiros que vieram a Braga não podiam estar mais de acordo. Lucas Figueiredo resumiu a questão com humor: “Nós somos os vira-latas, bons vira-latas, que vão correndo atrás do pau, e os historiadores são os puro-sangue, mas já não há campos sagrados e o ideal seria fazermos uma parceria”, defendeu. E se a colaboração do historiador pode fazer com que “o pau que o vira-lata vai buscar mostre toda a floresta”, Figueiredo também gostaria de ver mais historiadores a invadir o seu próprio território. “Quando o Kenneth Maxwell escreve uma crónica política a quente sobre a crise do governo PT para a Folha de S. Paulo, é muito melhor do que muitos jornalistas que fazem isso o dia todo”, diz.

Também Fernando Morais, autor de vários livros de biografias (entre as quais Olga, Chatô e O Mago) e de reportagens, focou as diferenças entre ambos ofícios, lembrando que o livro de um jornalista nasce muitas vezes de um acaso fortuito. Um dos que escreverá quando tiver tempo nasceu numa viagem à Amazónia: “Desci do barco para ir tomar uma refeição numa cidadezinha minúscula, e no bar onde me sentei tinha um índio com calção Adidas, sandália havaiana e uma estrela de David ao pescoço”. Cheirou-lhe a personagem, perguntou quem era, e ficou a saber que se tratava de um descendente de uma diáspora de judeus marroquinos que chegara ali no final do século XIX. Acresce que o homem era o organizador local do jogo do bicho e usara os rendimentos desse proveitoso negócio para erguer uma grande sinagoga na povoação.

Talvez outro tema forte deste encontro tenha sido justamente o das biografias, quer por ser um género simultaneamente reivindicado pela historiografia, o jornalismo e a ficção, quer por várias intervenções se terem focado numa só personagem, como as de Maxwell ou Nuno Gonçalo Monteiro sobre o Marquês de Pombal, ou a da historiadora Júnia Furtado sobre Chica da Silva, uma escrava do século XVIII, depois alforriada, que manteve em Diamantina uma relação de quinze anos com o abastado negociante português João Fernandes Oliveira, tendo-lhe dado treze filhos.

A sua história foi revelada no terceiro quartel do século XIX por um advogado, Joaquim Felício dos Santos, que se deparou por motivos profissionais com o valioso espólio dos descendentes de João Fernandes e Chica da Silva. “Racista e escravocrata”, diz Júnia Furtado, o advogado “perguntou-se como uma fortuna daquelas tinha ido parar a um conjunto de mulatos”, e como fora possível “um desembargador da Relação do Porto e cavaleiro da Ordem de Cristo desenvolver um relacionamento tão longo com uma escrava”. Felício dos Santos pinta-a como “uma escrava boçal, horrorosa, careca”, explica a historiadora, um retrato que contrasta com a mulata bela mas perversa do romance Chica que Manda, que Agripa Vasconcelos publicou já no início dos anos 60 do século XX, quando a mulata começava a transformar-se num ícone da sociedade brasileira, ou com a Chica politizada que surge nos anos 70 na literatura e no cinema. 

 
Cor? Puxa para branco
O mais interessante para Júnia Furtado foi perceber o modo como os filhos de Chica da Silva conseguiram ascender socialmente apesar do triplo estigma de serem mulatos, descendentes de escravos e filhos ilegítimos. E a sua conclusão é que toda a estratégia, da compra de perdões à manipulação de documentos, foi montada para “embranquecer” a descendência do casal, procurando obliterar a ascendência negra e escrava. Uma constatação que ligaria a sua palestra às intervenções dos historiadores Lilia Schwarcz e João Reis.

Schwarcz lembrou que o Brasil foi o último país ocidental a abolir a escravatura e que ela existiu em todo o território brasileiro. Recorrendo a uma série de imagens, incluindo daguerreótipos do século XIX mostrando amas negras com os seus pequenos senhores brancos em primeiro plano, a investigadora mostrou como “a escravidão produziu uma linguagem do racismo” e como este sobreviveu à abolição da escravatura, persistindo até hoje com diversos rostos.

Definindo o racismo como “a transformação da diferença em desigualdade”, Schwarcz retomou “essa ideia de branqueamento que marcou o início do século XX no Brasil”, lembrando que o então director do Museu Nacional do Rio de Janeiro, João Baptista Lacerda, levou ao I Congresso Universal das Raças, em 1911, a sua convicção de que a raça negra se iria extinguir no país, dando lugar a uma sociedade branqueada. Lacerda afirmaria mesmo que bastariam três gerações para o Brasil se tornar completamente branco, uma tese, acrescenta Schwarcz, que “foi considerada pessimista no Brasil da época, que achava que três gerações eram demais”.

Recordando que os actuais censos brasileiros ainda recorrem a um sistema que divide a população segundo a cor - brancos, pretos, vermelhos, amarelos e pardos -, Lilia Schwarcz apresentou os resultados de um inquérito de 1970 que perguntava aos brasileiros qual era a sua cor. Os sociólogos receberam mais de uma centena de respostas diferentes, incluindo “alva escura”, “meio branca”, ou mesmo “puxa para branco”.

A autora terminou contando o caso de uma favela que organiza anualmente um jogo de futebol intitulado “pretos contra brancos”. Schwarcz estuda o jogo há anos e tem constatado que as mudanças de equipa são frequentes. Da última vez, um jogador negro explicou-lhe que os brancos o tinham contratado e iria jogar por eles. “Está a dizer-me que mudou de zona na favela, ou comprou um carro, ou talvez tenha casado com uma pessoa mais branca”, explica a historiadora, acrescentando que o próprio lhe confidenciou: “Me sinto mais branco”.

Dado este trânsito de jogadores entre ambas as equipas, Schwarcz perguntou se, afinal, não havia critério nenhum. “Há sim, professora, se o cabelo mexer não pode jogar pelos pretos”.

Noutra excelente intervenção, centrada nos escravos libertos, o historiador brasileiro João Reis deixou uma hipótese interessante para a discussão da relação entre escravatura e racismo. “Talvez não devamos procurar os aspectos mais inteligíveis do nosso racismo na escravidão”, sugeriu, mas justamente nesses escravos alforriados aos quais nunca foi concedida cidadania plena, o que, além do mais, defende Reis, “privou o país de uma elite negra”.

Em favor desta tese, lembra que, ao contrário dos EUA, onde o norte anti-esclavagista obrigou o sul a justificar a escravatura, “o Brasil nunca desenvolveu uma teoria racialista da escravidão”, tendo produzido, sim, “depois da abolição, uma defesa racialista da desigualdade”.

Do lado dos historiadores portugueses, uma das intervenções mais potencialmente polémicas foi a de Diogo Ramada Curto, que defendeu que “a historiografia portuguesa relativa à escravatura está muito atrasada” por contraste com a brasileira, um estado de coisas que terá várias explicações, entre as quais se contaria, na opinião do investigador, a persistência de “uma toada neo-luso-tropical” que tentaria recorrer a comparações para sugerir que o colonialismo português fora melhor do que o de outros impérios europeus. Uma posição que, afirmou, estaria exemplarmente resumida num texto de José Mattoso.

Numa intervenção em que elencou diversos momentos que documentam, ao longo do século XX, a persistência do racismo no império colonial português - a começar pelo escândalo em torno da empresa chocolateira Cadbury, que nos primeiros anos do século XX mantinha fábricas impecáveis em Inglaterra ao mesmo tempo que usava mão-de-obra praticamente escrava em S. Tomé -, o historiador referiu-se também às obras de Charles Boxer e Gilberto Freyre, que teriam sido de algum modo vítimas de equívocos simétricos, o primeiro, francamente conservador, transformado numa espécie de “herói anti-colonial” no qual dificilmente se poderia rever, o segundo acusado de produzir uma obra que objectivamente servia a tese da excepcionalidade do colonialismo português, mas mal visto por largos sectores do regime.

A relação do autor de Casa-Grande e Senzala e O Mundo que o Português Criou com o salazarismo era mais complexa do que se pensa, defendeu Ramada Curto, lembrando que o autor brasileiro, após ter visitado a Lunda em 1953, afirmou que a Diamang, a Companhia de Diamantes de Angola, era “como um campo de concentração nazi” e comparou expressamente o seu director a um oficial do III Reich. Uma farpa que muitos sectores do regime nunca lhe perdoaram, e que lhe valeu diversos ataques, diz Ramada Curto, acrescentando que foi “o círculo de Adriano Moreira e da Escola Colonial” que percebeu que “era necessário usar a obra de Gilberto Freyre para justificar o colonialismo português nos fóruns internacionais”.

A encerrar a mesma sessão, que fora pensada para abrir o fHist, a secretária de Estado de Educação de Minas Gerais, Macaé Evaristo, uma pedagoga que se assume como militante e activista das lutas contra o racismo, trouxe um retrato actualizado da discriminação no Brasil, onde, por exemplo, um negro suspeito de um crime tem uma probabilidade de vir a ser formalmente acusado significativamente superior à de um suspeito branco. Muito aplaudida, a intervenção de Evaristo ilustra bem a singularidade de um festival de História que não hesita em abrir-se a outros saberes, não receia ser contaminado pela política e pensa o passado com um pé no presente.

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