A ocupação do corpo e da mente de Vincent Lindon pelas leis do mercado

É até agora a melhor coisa vista em concurso trazida por um cineasta francófono, e se calhar vai fazer outras figuras na história desta edição: La Loi du Marché, de Stéphane Brizé. Vincent Lindon, desempregado, inicia o processo de cursos de formação, de aconselhamento profissional, com vista ao mercado de trabalho. Uma história de aniquilação.

Fotogaleria
Vincent Lindon em La Loi du Marché
Fotogaleria
o actor Vincent Lindon e o realizador Stéphane Brizé na conferência de imprensa REUTERS/Eric Gaillard

A recepção foi a condizer com essa hipótese, e algo disso se deve ao facto de ser um filme impregnado pela angústia do nosso tempo, mas a caução do tema não é tudo: o mercado de trabalho e as suas ”leis” que despersonalizam, objectificam e aniquiliam a capacidade de transcendência, de solidariedade humanas.

Podia, por isso, ser um filme dos irmãos Dardenne se fosse aquele tipo de melodrama de heroísmo proletário em que os irmãos belgas se estão a fixar há alguns filmes. Mas não, La Loi du Marché pega no actor Vincent Lindon e numa série de não-actores cujas histórias de vida estão no ecrã, e inventa a sua própria claustrofobia. Para isso, criou as suas regras: pequena equipa, pequeno orçamento (realizador e actor prescindiram dos salários em favor de uma participação nos eventuais lucros para a equipa ser paga com dignidade), sem argumento, sem maquilhadora, sem iluminação. Este é um pacote de ordem económica e moral que teve consequências na economia estética do filme, que é fotografado por um director de fotografia, Éric Dumont, vindo do documentário e que nunca tinha trabalhado numa ficção.

Com as regras que também inventou para garantir a sua moral (como filmar o Holocausto?), um outro filme visto nesta competição, Le Fils de Saul, do húngaro László Nemes, protegia-se com o virtuosismo técnico, que era intimidante e que, dias depois do seu visionamento, continua a sê-lo. Nada disso em La Loi du Marché, filme disponível para se deixar invadir, para ser ocupado pela vigilância, pelo controle, pela despersonalização que começam a trabalhar sobre a personagem de Vincent Lindon à medida que, desempregado mas desejando-se activo para regressar ao mercado, inicia o processo de cursos de formação, de aconselhamento profissional e, finalmente, a integração em nova empresa: La Loi du Marché faz-se com uma série de blocos, de sequências, em que a câmara fica a ver, a dar conta da subtil ocupação do corpo e da mente da personagem de Lindon pelas leis do mercado – há um momento em que o que a câmara de cinema vê começa a ser substituído por aquilo que vêem as câmaras de vigilância do supermercado para onde Lindon vai finalmente trabalhar, como vigilante.

Se os Dardenne estão ao largo, já há links curiosos, por exemplo, com a curta portuguesa de Susana Nobre Provas, Exorcismos (Quinzena dos Realizadores), pela densidade quase metafísica da sua interrogação: em que é que nos tornamos quando trabalhamos? Dessa angústia do homem despromovido da sua dignidade pela ausência de trabalho faz-se, também, uma parte do primeiro volume, O Inquieto, de As Mil e uma Noites, de Miguel Gomes, cuja descoberta, volume a volume, está a ser indiscutivelmente um dos acontecimentos na Croisette.

O título em inglês do filme de Brizé, The Measure of a Man, dá conta dos dilemas na consciência da personagem de Lindon – fabuloso de disponibilidade física para ser invadido, uma entrega quase clássica. Esse tipo de dilemas povoam a personagem de Emily Blunt em Sicario, do canadiano Denis Villeneuve (competição), continuação da carreira americana por um realizador francófono.

Blunt é um elemento do FBI que se voluntariza para o combate contra o narcotráfico que, a partir do México, passa as fronteiras americanas. Mergulha num ensemble masculino (Josh Brolin, Benicio del Toro), não percebe nada do que ali se passa a não ser que a corrupção e o desejo de vingança também queimam do lado de quem combate o tráfico. Comparar com o Traffic (2001) de Soderbergh, também um “thriller cartel”, e com Del Toro, não faz grande bem a Sicario, não porque o filme de Soderbergh seja propriamente uma obra-prima mas porque fixou um modelo. E a Villeneuve falta a capacidade de fazer ressoar nas personagens e na sua violência algo mais do que gestos, traços e ritos já vistos.

Louder than Bombs, do norueguês Joachim Trier - outro filme, na competição, com cast internacional, Gabriel Byrne, Isabelle Huppert, Jesse Eisenberg, e que é a estreia em língua inglesa de um realizador sem origem anglófona -, é um meticuloso trabalho de (involuntária) ocultação da emoção e da energia num melodrama familiar. Tudo acontece porque uma mãe (Huppert, aqui como fotógrafa de guerra célebre) morreu, por acidente ou por suicídio, não se sabe, e o marido e os filhos herdam o seu fantasma. É caso para lembrar que há muitos anos Robert Redford fez quase o mesmo filme, Gente Vulgar (1980), sem tanto rendilhado com a montagem, com o som e com os sonhos, falta de protecção essa que lhe valeu sarcasmos e desconsiderações várias.  É caso para dizer que a forma como Trier (o realizador de um estimável Oslo, 31 de Agosto) aumenta o potencial arty do filme não o torna melhor do que o mais simplório Gente Vulgar. E faz dele coisa seguramente mais gélida.

Por mais que esvoace é algo impotente o romantismo que se imprime em Marguerite e Julien, a entrada em competição de Valérie Donzelli de que se estava à espera mais ano menos ano depois do efeito de comoção, em 2011, causado por La Guerre est Declarée, exibido na Semana da Crítica.

Donzelli filma um argumento que Jean Gruault escrevera nos anos 70 para François Truffaut (para quem escrevera também Jules et Jim e O Menino Selvagem). É a história de um irmão e de uma irmã, meninos selvagens também, decididos a colocar a sua história de amor para além do incesto que os vai punir. Pueril, exasperante, o filme está longe de coroar Donzelli como herdeira de Truffaut - ou, já agora, como continuadora do assolapado Leos Carax dos inícios.

Sugerir correcção
Ler 1 comentários