Há uma história de cinco séculos em Bisalhães que se está a aproximar do fim
À saída de Vila Real, um punhado de oleiros usa uma técnica ancestral para criar umas peças pretas únicas no mundo, e que estão em vias de extinção. A esperança reside agora na candidatura do barro de Bisalhães a Património Imaterial da UNESCO e em cursos de formação. Mas a esperança não é muita: “Se não se começar desde pequenino, não se aprende”.
Já foram cerca de 70. Hoje são apenas cinco os oleiros de Bisalhães, quase todos com idades entre os 70 e os 80 anos. Sentem-se esquecidos pelo Governo e pelas entidades locais. O que os faz continuar é a paixão pela tradição familiar que já vem do tempo dos bisavós e no seio da qual cresceram.
“Tinha 10 anos quando comecei. Portava-me mal na escola e, de castigo, ia para ao pé do meu pai vê-lo trabalhar. Passava lá dias inteiros e aprendi muito a observar”, explica Jorge Ramalho, um dos oleiros mais jovens a praticar esta actividade, enquanto molda o barro.
Tal como Jorge Ramalho, Miguel Fontes, que com 36 anos é o oleiro mais novo, voltou a dedicar-se recentemente a esta arte secular. Ambos sentiram que não podiam deixar acabar um dos ex-líbris de Vila Real. Neto de avós oleiros, Miguel também aprendeu em criança, mas não fez da confecção de louça preta profissão. Depois dos avós falecerem, vendo todas as ferramentas e matéria-prima abandonadas, sentiu que devia voltar a tentar produzir algumas peças. Contudo, para já, só as fabrica para a feira de S.Pedro de Vila Real, dedicando apenas algumas horas à olaria.
Já Manuel Martins, o oleiro mais velho, com 83 anos, dedica todos os seus dias, desde os oito anos de idade, à confecção do barro preto. Às 8h da manhã, abre o seu posto de venda, um espaço com pouco mais de quatro metros quadrados localizado – juntamente com os três restantes artesãos – numa das entradas da cidade de Vila Real.
Apesar da idade, Manuel Martins ainda tem força para pôr cerca de cem peças cá fora, espalhadas em bancadas improvisadas, em cima de tábuas de madeira sustentadas por baldes de plástico ou pneus e, à noite, retirá-las todas outra vez. Tem a quarta classe e toda uma vida dedicada à olaria. “Comecei com nove anos. Tínhamos três meses de férias para aprender. O meu pai ensinava-me a mim e ao meu irmão. Naquela altura, havia muita miséria e tínhamos mesmo de ajudar”, recorda.
De geração em geração
A Olaria Negra de Bisalhães ainda é feita segundo técnicas ancestrais, aquelas que passaram de geração em geração e que são obrigatórias para que os artefactos não percam as suas especificidades. “É um trabalho muito duro. Não é para qualquer um. É preciso ter umas mãos habilidosas, muita paixão e vocação. E a idade não perdoa”, diz Manuel Martins.
O barro, que tem de se ir comprar a Chaves, gastando-se só em transporte cerca de 150 euros, tem de ser picado à mão com um maço de madeira até se desfazer em pó, o que exige um grande esforço físico. “Antes havia quatro fábricas, agora só há uma. Isto é muito trabalho. Faz-se muito pouco pelos oleiros. Prometem muita coisa, mas não fazem nada”, lamenta Manuel Martins. “Até o secretário de Estado da Cultura desconhecia este artesanato quando se entregou a candidatura para património imaterial da UNESCO”, sublinha Jorge Ramalho.
Após a moagem, o pó argiloso é peneirado com a ajuda de um crivo (peneira com rede de malhas largas), para se removerem todas as impurezas. De seguida, mistura-se a argila com água até se conseguir a consistência desejada. Antigamente, esta tarefa era realizada pelas mulheres. Hoje, eles fazem tudo sozinhos. Depois de bem amassado, o barro está pronto para ir para a roda de madeira, onde ganha a forma que o oleiro quiser.
Todas as etapas requerem muita técnica. “Quando estou a amassar o barro, tenho de sentir na minha mão que ele está pronto para ir para a roda. Tem de estar todo uniforme, suave e fofinho, sem partes moles e duras, se não não o consigo levantar na roda”, explica Jorge Ramalho. A matéria disforme é depois envolvida pelas suas mãos, que a levantam com o fanadouro (uma ripa de madeira) e a moldam com um pano molhado. Nesta fase, uma distracção de um segundo pode estragar a forma que tem de estar segura e em equilíbrio e que, por isso, necessita de umas mãos cuidadosas que a encaminhem.
Rodas com mais de duzentos anos rodopiam ao sabor da vontade dos oleiros, que cada vez produzem menos peças. Também cabia à mulher fazer a roda rodar, sem parar. Hoje, são eles que fazem as duas actividades em simultâneo, demorando por isso mais tempo a realizá-las. Já Jorge Ramalho encontrou uma forma se poupar um pouco, criando a sua própria roda eléctrica com a adaptação de um motor.
Terminada a moldagem, usa-se uma pedra do rio para fazer os tradicionais desenhos (flores, folhas, estrelas, espirais e ziguezagues) nas faces da peça que é retirada da roda com a “cega” (linha de costura, por exemplo). Juntamente com outras louças, entra nos fornos abertos no chão, onde é cozida. Em cima das peças, põe-se uma camada de rama de pinheiro verde a arder para ajudar na cozedura.
É em Bisalhães que estão os fornos, aldeia transmontana que dá nome a esta olaria e que outrora foi um dos mais importantes centros oleiros do país. Hoje, os artesãos já não carregam a lenha às costas, mas o trabalho continua a ser “muito duro”. “Somos poucos para tanto esforço. Só a parte da cozedura, para manter as características originais da louça, é muito chata. Se vem uma trovoada ou chuva, desfaz-se tudo em minutos”, explica Querubim Rocha, oleiro com 73 anos, que perdeu o pai com seis anos e, desde aí, se viu obrigado a aprender a arte. Nunca gozou férias e foram raros os fins-de-semana em que descansou. Recentemente também deixou de ter a ajuda da mulher, que faleceu, o que afectou a produção. ”Infelizmente agora faço tudo sozinho”, lamenta.
As peças são cozidas a temperaturas muito elevadas. “Não é um trabalho fácil para quem está à frente do forno a meter e a tirar a lenha”, acrescenta Miguel Fontes. Depois de cozidas, são cobertas de caruma, musgo e terra, abafando-as para que não se liberte o fumo. É neste método de cozedura que reside o segredo da cor da louça.
Após umas horas, retiram-se com cautela, pois saem a altas temperaturas, na ordem dos 1000ºC. Além de que cerca de 30% da loiça parte ao ir ao forno. “A nossa arte não é brincadeira. Estamos uma vida a aprender. Um trolha põe-se rapidamente um mestre, mas aqui é mais difícil. Ainda hoje estou a aprender”, explica Cesário Martins, irmão de Manuel, com 79 anos.
Património nacional
De forma a não deixar morrer esta arte que remonta ao século XVI, o Barro Preto de Bisalhães foi, no passado dia 5 de Março, reconhecido como património cultural nacional, tendo sido inscrito no Inventário Nacional do Património Cultural e Imaterial. Este reconhecimento resultou de um processo levado a cabo pela Câmara de Vila Real, juntamente com a Junta de Freguesia de Mondrões, a Associação Empresarial Nervir e a Direcção Geral do Património Cultural, que prepararam uma candidatura, já entregue, para que o processo de confecção do Barro Preto de Bisalhães seja incluído na lista do Património Cultural Imaterial da UNESCO.
Com a possível extinção de uma das tradições mais antigas de Vila Real, já foram dados alguns passos no sentido de motivar os vila-realenses a aprender como se produz a louça negra. A autarquia promoveu algumas acções de formação nesse sentido, mas foram esporádicas e de êxito reduzido, e a esperança dos artesãos não parece ser muita. Os oleiros acreditam mesmo que esta estratégia é “inútil”. “Não adianta fazer uns cursos, porque, para se aprender, tem de se nascer no meio disto. Se não se começar desde pequenino, não se aprende. Tem de se ter tacto, que se ganha desde criança. E, claro, ter algum gosto em querer aprender, vontade e persistência. Por isso, a tendência é para acabar”, diz Jorge Ramalho.
Da mesma opinião é Querubim Rocha, que até já aponta outras soluções para que a actividade não se extinga. “Já deram muitos cursos, mas não adianta nada, porque tem de se começar desde novo a insistir todos os dias. Devia fazer parte do plano curricular já desde a escola primária”, defende. Além disso, não se pode parar. “Vontade” e “sensibilidade” nas mãos são os grandes segredos da olaria. As mãos de um oleiro são como a de um pianista. Precisam de treino. Dizem mesmo que, parando um dia, no dia seguinte as mãos já estão destreinadas e não sentem o barro da mesma forma.
Com a descida das vendas, os olieros viram-se obrigados a diminuir a produção. Ainda assim, fazem diversas variedades de peças. O alguidar, a assadeira, os potes e as panelas são os utensílios culinários com mais saída. Até porque a comida sabe melhor quando é feita nestas peças. As mais decorativas, como as bilhas de rosca, as canecas de segredo, os vasos de argola e as pichorras começaram a ser menos procuradas nos últimos anos. Os pucarinhos de peito, peças minúsculas outrora oferecidas pelos namorados às donzelas que os guardavam na liga ou ao peito, hoje são apenas usados como lembranças em casamentos e baptizados e para serem colocados nas capas dos estudantes universitários.
Há dias em que os oleiros não vendem nada. Outros que não lucram mais do que cinco euros. No entanto, a olaria de Bisalhães ainda vai dando para sobreviver com as encomendas que chegam do estrangeiro, de restaurantes e quintas. “Há dias em que faço 400 euros, o que vai dando para compensar aqueles em que não se vende”, diz Jorge Ramalho.
Os turistas são cada vez menos e a localização dos postos de venda também não ajuda ao comércio. No tempo dos bisavós destes oleiros, a venda era ambulante. Ainda hoje se lembram como era duro calcorrear enormes distâncias, descalços, com a louça às costas pela aldeia fora.
Já as mulheres levavam grandes cestos na cabeça. Em tempos não muito distantes, era mesmo costume trocar os utensílios por comida, servindo os mesmos de medida. Por exemplo, um alguidar era trocado por duas vezes a sua capacidade em batatas, castanhas ou feijões. Hoje, as condições para venderem uma das marcas identitárias da região não são muito melhores. Já estiveram na sinuosa estrada do Marão, onde dizem que vendiam mais. No entanto, a construção da via rápida (IP4) afastou-os de lá.
Os oleiros reclamam que a zona onde estão agora é apenas um ponto de passagem dos carros e que há mesmo dias em que ninguém pára para ver. Quem chega para conhecer a cidade, nem sequer lá passa. “Onde foi mesmo bom foi na estrada antiga. Ali passava muita gente. Aqui as pessoas passam para ir para o emprego. Também não há sinalização nenhuma a indicar o artesanato. Quem andar à procura, não encontra”, explica Querubim Rocha.
Pouca esperança
Apesar dos oleiros serem unânimes em considerar que a candidatura à UNESCO já vem tarde, o presidente da Câmara de Vila Real, Rui Santos, acredita que o envolvimento de várias entidades, e até de membros do Governo, inclusive do primeiro-ministro, no avanço da mesma poderá levá-la a “bom porto”. “A candidatura tem como objectivo reconhecer os jovens e as mulheres que ao longo de gerações trabalharam no Barro Preto de Bisalhães e, percebendo que a arte está com índices de actividade muito reduzidos, criar um conjunto de medidas de salvaguarda e de incentivo a que ela seja retomada. Temos de a valorizar, porque, infelizmente, durante anos quem trabalhava nela era desvalorizado socialmente”, avançou.
Rui Santos deixou ainda o desejo de ver criados mais cursos de formação para jovens que se queiram dedicar à olaria de Vila Real. “Se as pessoas puderem sobreviver ou viver com dignidade em função deste trabalho, julgo que haverá pessoas disponíveis a aprender. E talvez possamos, no âmbito das Actividades de Enriquecimento Curricular, introduzir nas escolas um conjunto de actividades ligadas à Olaria de Bisalhães”, acrescentou.
Miguel Fontes, por ser o oleiro mais novo, sente muitas vezes uma maior responsabilidade para que a actividade historicamente ancorada na comunidade não se extinga. “Às vezes dizem que vou ser o salvador da olaria. É uma grande responsabilidade e, por um lado, não gosto de a ter, porque isto, para mim, é um part-time. Dedico-me mais na altura do S. Pedro, que é quando vendo”, acrescenta. Ainda assim, Miguel tem esperança nas futuras gerações. “Já tenho um filho e um sobrinho que gostam de brincar na roda. Vamos ver se essa vontade de experimentar continua e serão eles os seguidores”, diz. “Reergui esta arte pelos meus antepassados. O meu bisavô e avô eram oleiros. Agora até me meto com o meu pai a ver quem faz a melhor caneca”, conta Jorge Ramalho, divertido.
Manuel Martins, Querubim Rocha e Cesário Martins, os oleiros com mais idade, querem continuar até que a saúde lhes permita. “O que me faz continuar é a paixão. Tenho muita paixão por isto e enquanto puder não desisto”, frisa Manuel Martins. “Tenho pena que isto acabe, mas acho que vai acabar. Não há nenhum interesse pelos jovens para que isto continue. Esta nova geração não quer aprender, só quer passear os livros”, lamenta Cesário Martins.
O resultado final da candidatura à UNESCO será conhecido em Novembro de 2016. Os escassos protagonistas desta história esperam agora que o que resta de um passado não muito longínquo volte a colocar Bisalhães num lugar de destaque do panorama do artesanato português.