Raimund Hoghe, aliás Minnelli

An Evening with Judy e Quartet, as duas mais recentes peças do coreógrafo alemão que podem ser vistas esta sexta-feira e amanhã no Rivoli, vão da depressão de duas vidas afundadas em álcool e comprimidos ao esplendor de luzes e confetti do musical. Judy Garland primeiro, Liza Minnelli depois: até hoje, ele não consegue ouvi-las sem ficar de lágrimas nos olhos.

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LUCA GIACOMO SCHULTE

Deformada por um parto difícil e pela ausência de medicação adequada, a sua coluna não é uma coluna “normal” – e mais anormal será à medida que o tempo continuar a passar e o avanço do diagnóstico pré-natal permitir erradicar definitivamente a deficiência como a mais indesejável das anomalias (“Não sou contra o aborto, mas sou contra a selecção de pessoas, porque isso é fazer o que o Terceiro Reich fez. Escolher não é humano. Se a minha mãe tivesse ‘escolhido’, talvez eu não tivesse nascido”, disse-nos em 2007, quando veio à Fundação de Serralves contar a história da sua luta num ciclo paralelo à exposição Anos 80: Uma Topologia).

Não estaríamos outra vez a ter esta conversa sobre o coreógrafo alemão se An Evening with Judy (2013), a primeira das duas peças que este fim-de-semana traz ao Teatro Municipal do Porto – Rivoli no prolongamento do Dia Mundial da Dança (hoje, 21h30, Grande Auditório), não tratasse justamente do glorioso momento, ocorrido há muitos e bons anos, ainda o leão da Metro-Goldwyn-Mayer (MGM) rugia, em que Raimund Hoghe encontrou uma alma gémea do tamanho de Judy Garland (1,51 metros, para sermos mais precisos).

Estaremos a romantizar, mas apenas porque não há outra maneira de olhar para esta peça em que se trata sempre da turbulenta história de amor entre o público e a menina que aos 12 anos calçou uns sapatos vermelhos para seguir por uma estrada de tijolos amarelos e cumprimentar O Feiticeiro de Oz e que aos 47, um casamento com Vincente Minnelli (em certo sentido o seu Frankenstein) e várias tentativas de suicídio depois, apareceu morta na casa-de-banho do apartamento que alugara em Londres, afundada em cirrose, depressão e comprimidos para dormir. Por algum motivo, aliás, as primeiras palavras que se ouvem, numa voz off monumental, são: “Thank you for being here. And I love you.”

Antes disso, claro, An Evening with Judy trata sobretudo da história de amor entre Raimund Hoghe, que na sua autobiografia, quando teve de se definir (escritor, actor, performer, dramaturgo, coreógrafo?), escreveu “corcunda”, e a starchild tornada box office draw a quem Louis B. Mayer, o patrão da MGM, chamava “a minha corcundinha”. Continua até hoje, essa história, assegura Raimund, que encontramos num hotel do Porto horas depois de uma viagem de avião em que veio a ouvir duas gerações de raparigas malditas, a mãe Judy Garland e a filha Liza Minnelli, e ficou mais uma vez “de lágrimas nos olhos”. “Gosto muito da Judy desde a minha infância. Na peça mostro um disco dela que me acompanha religiosamente desde então. De resto, já em 1980 – Ein Stück von Pina Bausch, a minha primeira grande peça para a Pina Bausch [durante uma década, Hoghe foi dramaturgo da coreógrafa alemã no Tanztheater Wuppertal], o Over the rainbow aparecia duas vezes: numa primeira versão gravada quando a Judy Garland ainda era jovem, e numa outra gravada já no final da vida. Dei esses dois discos à Pina – e agora uso-os eu noutro contexto”, diz ao Ípsilon. A paixão que tem por Judy Garland, acrescenta, não é bem do mesmo género da que teve por outras cantoras americanas ou francesas: “Saber que o patrão lhe chamava ‘minha corcundinha’ é tão forte para mim… Não, ela não tinha nem a beleza nem o glamour das outras estrelas de Hollywood, e é impossível eu não me identificar com isso.”

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Cortesia de Everett Collection/Rex Features

Tragédia
Terceiro de uma série de retratos de cantores sem happy end – depois de Meinwärts (1990), o seu primeiro solo, a partir da vida do tenor romeno-alemão Joseph Schmidt, que foi perseguido pelos nazis e morreu em 1942 num campo de internamento para imigrantes ilegais na Suíça, um dia antes de lhe ter sido concedido um visto de trabalho; e de 36, Avenue Georges Mandel (2007), sobre a morte atrozmente solitária de Maria Callas em Paris, aos 53 anos –, An Evening with Judy parece um reencontro de Raimund Hoghe com a tragédia. Não é: “A tragédia das vidas deles não me interessa. Interessa-me a extraordinária qualidade musical dos três: deram tanto deles que ainda hoje ouvi-los cantar é invulgarmente comovente. Ouves um disco da Judy Garland e pensas: ‘Ok, ela não vai conseguir cantar outra música assim, pôs o coração todo aqui’. E depois a canção seguinte é igualmente arrebatadora.”

Certo, Raimund Hoghe não ignora que a tragédia é fundadora na vida dos três. Feio, baixíssimo, Joseph Schmidt passou ao lado da fulgurante carreira na ópera que a sua voz prometia porque media menos de 1,52m (conta o site Music and the Holocaust: “Quando o maestro Leo Blech o ouviu cantar pela primeira vez, ficou profundamente comovido: ‘Pena não seres baixo’, disse-lhe. ‘Mas eu sou baixo’, respondeu Schmidt. ‘Não, tu não és baixo, tu és demasiado baixo’, retorquiu o maestro”).

Paradigma mais-que-perfeito da diva do século XX, Maria Callas morreu sozinha – como uma sem-abrigo, argumentava Hoghe em 36, Avenue Georges Mandel, a peça que se sentiu forçado a fazer depois de uma visita ao hall da casa onde a soprano morreu de ataque cardíaco –, cumprindo o destino da frase que dissera uns anos antes (“É terrível ser a Maria Callas”). E depois há Judy Garland, nascida Frances Ethel Gumm em 1922, no Minnesota, filha de pais que faziam vida do vaudeville e que a medicavam para a pôr a trabalhar, tal como às irmãs – a Judy Garland que parecia grande de mais para protagonista de O Feiticeiro de Oz, que foi recauchutada para funcionar como a girl next door (já que a mais do que isso não podia aspirar) nos musicais de Minnelli, que foi uma estrela difícil, absentista e suicida e mesmo assim teve uma segunda vida na televisão, com o The Judy Garland Show, e nas salas de concertos, antes de se matar de vez.

Música
An Evening with Judy, o espectáculo que Hoghe faz caber inteiro no trolley com que entra e sai do palco de vestido preto, saltos altos, véu e óculos escuros (tal como 36, Avenue Georges Mandel cabia inteiro num cobertor da Cruz Vermelha), alimenta-se desses materiais biográficos (sobretudo de entrevistas, porque não está interessado “no que terceiros pensam acerca dela, apenas no que ela diz de si própria”), mas também de toda a fantasia inscrita nas canções dos discos guardados dentro dessa mala, uma fantasia que frequentemente a verdadeira vida de Judy contradiz. Mas se o espectáculo começa instalado nessa zona de apoteose e de aplauso que podia ter sido (mas não foi…) de conforto para Garland, como sublinha a intransponível distância entre as primeiras e as últimas versões de Over the rainbow, acaba colado ao luto por uma vida que não acabou como a actriz imaginava, na cozinha (porque as insónias tiveram isso de bom: fizeram-na aprender a cozinhar). Em certo sentido, porém, esta história tem uma continuação inesperada em Quartet (2014), que expande a reflexão de Hoghe acerca do preço do show-business, da ambivalência do estrelato e do que há por trás da lenda – uma continuação materializada no corpo do bailarino Takashi Ueno, que aparece na primeira peça “como convidado, como uma espécie de figuração da Liza Minnelli” em foco na segunda peça (amanhã, 21h30, Grande Auditório).

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Inicialmente pensada como uma dedicatória para (e com) os seus quatro bailarinos favoritos e mais fiéis – Ornella Balestra, Marion Ballester, Emmanuel Eggermont e Takashi Ueno – a partir dos quartetos de cordas de Schubert, Quartet evoluiu como todas as peças corais de Hoghe em função do que aconteceu nos ensaios (“Sou muito aberto. Muito do que acaba por entrar vem da música e do modo como os bailarinos reagem às minhas escolhas. É uma jornada: vamos juntos e eu descubro muitas coisas com eles, neles”, explica-nos). Mas também evoluiu em função do que aconteceu em An Evening with Judy, não só porque Hoghe não queria voltar a estar praticamente sozinho em palco como porque foi com Judy Garland que chegou a Liza Minnelli (“Claro que conhecia o Cabaret e o New York, New York, mas o resto não”).

Há mais música em Quartet, nalguns casos sugerida pelos bailarinos: vozes divertidas como as das versões italianas de Girl, dos Beatles, ou These boots, de Nancy Sinatra, mas sobretudo vozes doridas como as da brasileira Dolores Duran, que um amigo português deu a conhecer a Hoghe e ele demorou anos a levar a sério (“Achei o nome tão estúpido, tão foleiro…”), da enorme Elaine Stritch, outra epifania recente, ou de Marianne Faithfull. “Há alguma coisa nessas vozes que fala da luta pela sobrevivência”, argumenta Hoghe, resumindo aquilo que escreveu sobre Judy Garland e que está em todas as entrelinhas de Quartet: “Interessam-me essas vozes de outro tempo. Têm qualidades que não existem nas vozes contemporâneas, que se gastam rapidamente, primeiro porque o marketing é impositivo e obriga os cantores a cantarem demasiado, e depois porque a televisão cria estrelas todas as semanas.”

As estrelas dele, Raimund, não se gastam nunca, embora morram relativamente cedo e ainda assim não deixem cadáveres bonitos (mas enfim, afinal isto é o entretenimento, e não há negócio como ele). Mais do que na maioria das outras peças do coreógrafo, há cor e ligeireza em Quartet, como num musical: “Acredito na felicidade (há flores em quase todos os meus espectáculos…), mas também conheço o outro lado da vida. Em 1999 criei um espectáculo a partir de cartas de amor, Lettere Amorose. Uma das cartas em que me baseei era de dois jovens africanos que sonhavam vir para a Europa agarrados às asas de um avião. Passaram estes anos todos e continua a ser uma tragédia dos nossos dias.”

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No fundo, também é por isso que Raimund Hoghe quis ser estas três pessoas – Schmidt, Callas, Garland – pelo menos uma vez na vida. “Com o Joseph Schmidt não foi difícil porque ele era baixo e descrito como feio pelos jornais nazis. Com elas é mais difícil, por isso me limito a usar saltos altos, um lenço e uma saia. Não o faço por travestismo. Faço-o porque não quero nem consigo explicar a um bailarino o que sinto por estas pessoas. É a Judy que canta no Nasceu uma Estrela, embora não esteja na minha peça: ‘I’ll go my way by myself’.”

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