Ao longo de nove filmes (e de uma peça de teatro), sucederam-se as polémicas e a troca de “mimos” entre ambos, com Agustina, bem ao seu estilo, sempre muito mais virulenta do que Oliveira. O momento mais agudo desta relação surgiu com O Convento (1995), que o realizador fez a partir de um argumento escrito por si próprio sobre o tema de um romance em que a escritora trabalhava na altura (que cruzava o Fausto, de Goethe, com as origens de Shakespeare).
Agustina não gostou da leitura que Oliveira fez do tema, e decidiu mesmo trocar o título que tinha previsto para o livro – de Pedra de Toque para As Terras do Risco; por sua vez, também Oliveira tinha trocado o título do filme para O Convento. Mas o que fica, no final de um quarto de século, é uma cumplicidade criativa e afectiva entre ambos os autores, com Agustina a realçar o carácter de “grande visionário” do realizador, e Oliveira a destacar os “muitos confortáveis conflitos” que viveu com a escritora.
Nove filmes e uma peça de teatro:Francisca(1981) – Adaptação do romance
Fanny Owen(Agustina tinha também escrito, anteriormente, um argumento cinematográfico sobre o mesmo tema).
Visita ou Memórias e Confissões(1982, filme inédito) – Diálogos a partir do texto
A Visita.
De Profundis(1987) – Peça de teatro de Agustina sobre poemas de Nobre, Pessoa e Régio, encenada por Manoel de Oliveira para o Santarcangelo dei Teatri, de Roma.
Vale Abraão(1993)
–
Adaptação do romance homónimo.
O Convento(1995)
–
Adaptação de uma ideia do romance de Agustina, que inicialmente se deveria chamar Pedra de Toque, mas a que a escritora chamaria, depois, As Terras do Risco. O romance foi escrito paralelamente à realização do filme.
Party
(1996) – Diálogos escritos por Agustina propositadamente para o filme.
Inquietude
(1998) – A Mãe de um Rio, de Agustina, é um dos três textos adaptados por Oliveira (os outros são Os Imortais, de Prista Monteiro, e Suzy, de António Patrício).
Porto da Minha Infância(2001)
–Agustina tem uma “participação especial” no filme, lendo um texto seu sobre a condição da mulher.
O Princípio da Incerteza(2002)
–
Adaptação do romance A Jóia de Família.
O Espelho Mágico(2005) – Adaptação do romance
A Alma dos Ricos.
Nota: Os dois livros atrás referidos integram a trilogiaO Princípio da Incerteza
, cujo terceiro volume tem por títuloOs Espaços em Branco
.[Livro Duas Décadas com Manoel de Oliveira]
Memórias e confissões de dois criadoresPartyé o quinto filme resultante do trabalho conjunto Oliveira-Agustina. Juntamos os dois criadores para uma conversa que decorreu numa manhã húmida deste Verão, no tom rico e despretensioso que só as amizades antigas e genuínas verdadeiramente permitem.
Como é que surgiu o projecto comum de Party?
MANOEL DE OLIVEIRA – Num colóquio, escutei a Agustina a falar sobre o conflito entre o Masculino e o Feminino. Foi sobre essa ideia que lhe propus qualquer coisa sobre isso: um casal mais novo e outro mais velho onde se revelasse esse confronto. E a Agustina fez o diálogo.
Nessa altura, a Agustina sabia já que ia escrever para actores definidos: Irene Papas e Michel Piccoli?
AGUSTINA BESSA-LUÍS – Sim, foi a primeira vez que eu adaptei o texto a personagens que o iriam interpretar. Escrevi para o Piccoli aquele papel.
M.O. – O Piccoli e a Irene Papas; a Leonor Silveira e o Rogério Samora – os quatro são óptimos e gostaram muito do diálogo. É um diálogo corrido e acho que o filme é engraçado. Além disso, a Agustina deu-me também a sugestão da casa...
A.B.L. – Eu, nessa casa, estive só uma vez na vida. Mas há um caso extraordinário que me fez fixar nela. No ano passado, quando o Mário Soares veio ao Porto para homenagear as pessoas que condecorava, houve uma festa, um almoço, e depois fomos para o Pavilhão Rosa Mota. E os lugares eram marcados. Fui para o meu lugar e quem se senta ao pé de mim foram os donos dessa casa!...
M.O. – Eu falei-lhe nessa ocasião. E a sugestão foi óptima. O tempo é que foi péssimo, foi uma tempestade pegada!...
A Agustina e o Manoel de Oliveira conhecem-se há já muitos anos. Como é que descobriram as obras um do outro?
A.B.L. – Eu acompanho a obra de Manoel de Oliveira desde o
Aniki-Bóbó, um filme em que, com o tempo, vou descobrindo uma frescura e uma inocência a que na juventude não se dá valor. Conheço a obra de Manoel de Oliveira desde o princípio, não só porque num grupo mais íntimo se falava dela, mas também porque foi uma obra que nascia da sociedade do Porto e havia uma atenção especial voltada para ela. Deve ser diferente em relação ao Manoel de Oliveira conhecer a minha obra, porque o cinema atrai um público mais imediatamente do que uma obra literária, que nasce como um pequeno ribeiro, cheio de acidentes, e que, primeiro que possa captar um público, é realmente difícil; sobretudo a minha obra, que foi considerada sempre para um pequeno grupo; só mais tarde, uma outra geração pegou nela com outros olhos.
Quando é que Oliveira descobriu que queria trabalhar sobre os textos de Agustina?
M.O. – O primeiro livro que li da Agustina foi
A Sibila. Os livros da Agustina são bastante complexos; do ponto de vista cinematográfico, são um pouco difíceis, têm muitas personagens, muita intriga, muitas complicações... e tudo isso é difícil de arrumar no cinema. Nessa altura, dava-me a impressão – errada, reconheço agora – que, se eu escrevesse as histórias, tudo me era mais fácil, porque estava a escrever para ser filmado. Um livro – sobretudo quando os livros têm um carácter literário muito forte, como é o caso da Agustina e também do Régio – é muito mais difícil. Há uma diferença muito grande entre o que é o cinema e o que é o livro. A transposição de um livro para o cinema é uma coisa extraordinariamente difícil e nunca há uma correspondência. A diferença é abissal. Pode dizer-se que há um conflito muito grande entre um livro e um filme. O filme nunca será o livro, e o livro não tem só uma forma de poder ser filmado, tem mil formas.
A.B.L. – É outra forma de criação.
M.O. – Sim. E nunca um filme pode corresponder mesmo ao que o realizador imagina, porque ele não faz sempre exactamente aquilo que quer. É muito difícil. Eu tentei o máximo no Amor de Perdição, seguindo à risca. O texto está lá todo. Tentei fazer o mesmo com o primeiro filme que fiz de um texto da Agustina, o Fanny Owen. Também segui, tanto quanto me pareceu possível a par e passo, o livro. Mas não fiz interpretações, como às vezes as pessoas pretendem que é mais cinematográfico. É que o texto literário não tem correspondência cinematográfica, mas tem a possibilidade de ser transposto. A única maneira de filmar um livro tal e qual ele é, é filmá-lo página a página, e o espectador lê-o no ecrã (risos).
Manoel de Oliveira disse que existe um conflito entre o texto e o filme. Esse conflito passa para os escritores?
A.B.L. – Desde que se pensa que o livro possa ser filmado, esse conflito começa também a existir com o escritor. O escritor pode começar a pensar – e, no meu caso, isso acontece – que, para ser transporto para um filme, já não escreveria assim, teria também uma visão plástica diferente. A imaginação e o gosto de escrever seriam contemplados de outra maneira e com uma concisão maior. Por isso é que eu nunca quero interferir no que é a obra do cineasta. A obra é dele. Acho que há uma intromissão abusiva da parte do autor que escreve com a obra vista para o cinema.
É por isso que normalmente não acompanha a rodagem dos filmes de Oliveira?
A.B.L. – Lembro-me que, na
Francisca, só assisti a uma cena, uma das lindíssimas cenas: a da morte da personagem feminina. Mas não estava ali como escritora, mas como uma visitante que vai ver um estúdio...
M.O. – E, no fim, achou uma maçada muito grande, porque se parava muitas vezes até que se realizasse uma cena...
A.B.L. – Isso sim. O realizador tem que ter uma paciência espantosa!...
M.O. – Eu sinto o mesmo que a Agustina mencionou: escreveria de uma forma diferente. Quando escrevo, faço-o de uma forma diferente, cinematográfica, o que, a meu ver, é mau. O que acho interessante no caso de O Convento e do Vale Abraão é justamente que a Agustina não escreva para o cinema. Primeiro, porque isso é uma espécie de submissão a um outro elemento e, depois, retira um pouco a espontaneidade. O que admiro mais na escrita da Agustina é tudo quanto vem de uma forma quase vulcânica, e as coisas saem. Eu sempre propus que, se gostasse da sugestão que lhe tinha dado, o fizesse de uma forma literária. Depois do livro feito, eu recolheria o necessário para o filme. Isso enriquece muito mais o filme. Do Vale Abraão, gostaria de ter feito um filme enorme. Cada uma das personagens tem uma riqueza muito grande e o interessante seria desenvolver personagem a personagem. Mas isso seria um filme que nunca mais acabava. E não havia dinheiro. [Nesse aspecto, Vale Abraão] foi um filme que me deixou profundamente insatisfeito, justamente por não ter podido tratar cada uma das personagens em grande extensão.
A.B.L. – Mas na Bovary também acontece o mesmo. Nos filmes que vi que se fizeram sobre o romance de Flaubert, também há isso: personagens que são importantes no romance, mas que tiveram que ser deixadas de lado, evidentemente.
M.O. – Há outra parte importante que era a vida no Douro, todos os trabalhos da vindima. Eu consegui fazer isso tudo no mesmo ano. Filmei aquelas festas nas épocas próprias: o fogo na Régua, em Lamego... e todos os trabalhos essenciais do Douro, como a poda – é uma das cenas de que gosto muito e acho muito bonito...
A.B.L. – Mas essas personagens subalternas são extraordinárias. No dia da comunhão, por exemplo, quando ela vai para a vinha, há um homem que está a trabalhar que é um autêntico fauno. É uma coisa espantosa. Dá uma força às cenas que não têm tanta força no texto.
Apesar dessa independência entre as duas expressões artísticas, a literatura e o cinema, a Agustina alguma vez teve a sensação, ao ver um filme que Manoel de Oliveira fizesse a partir de um texto seu, de que ele “traía” a sua obra?
A.B.L. – Não. Isso não tive. Quando surge alguma inquietação interior – e é esta que é legítima –, é quando cada autor tem a sua visão e, a determinado momento, dizemos: “Esta não é a visão que eu teria”. Mas isso não significa que a que esteja lá não seja a correcta, porque foi colhida no pensamento da própria obra do autor.
Qual dos filmes feitos a partir de obras suas lhe agradou mais?
A.B.L. – Foi o
Vale Abraão, por um lado, pela extraordinária felicidade do livro todo e, por outro, por uma questão sentimental, porque o Douro é ali uma personagem. Eu dizia que, até aqui, o Douro não tinha cantores, ao contrário de outros rios – o Tejo teve. Isto [Vale Abraão] foi uma maneira lírica de ver o Douro e, para mim, foi particularmente agradável e grato.
Em que filme é que Manoel de Oliveira considera ter sido mais fiel ao texto de Agustina?
M.O. – Onde eu sou mais fiel ao livro é na
Francisca. Eu já conhecia a história. O Camilo tinha falado muito nisso; os lugares também eram meus conhecidos. E não houve nenhuma combinação prévia. Li o livro e fiquei encantado porque a ideia de fazer a Fanny Owen já a trazia comigo há muito tempo. Foi onde fui e onde podia ser mais agarrado ao livro. No Vale Abraão, era impossível, porque o livro é de uma complexidade e multiplicidade de coisas que era impossível registar em duas horas de cinema. Mesmo assim, o filme está “manco” de quatro cenas (cenas que vão ser agora repostas numa nova versão). Contudo, as melhores partes do texto da Agustina, em voz off, estão lá todas. Por exemplo, o filme foi muito apreciado pela crítica italiana, em Cannes. Posteriormente, tive que ir a Itália para receber um prémio e verifiquei que o filme tinha sido dobrado em italiano. Desta vez, os críticos que tinham estado em Cannes elogiaram ainda mais o filme porque puderam apreciar melhor a riqueza do texto. É um problema que tem o cinema, que é a língua...
A.B.L. – E a literatura na mesma – a dificuldade do que eu chamo as pequenas literaturas: não quer dizer que sejam literaturas com maus autores, ou autores menores, é a língua que não permite que eles sejam imediatamente divulgados.
M.O. – Sim. A língua é um obstáculo para a passagem da mensagem. Isso acontece na literatura, no romance, no cinema, mas não acontece no teatro. O filme dobrado é sempre mau, é uma voz que não é a do autor. Mas o teatro grego, shakespeariano e alemão, passa-se em todo o mundo e é representado pelos autores de um país, na língua desse país. A tradução pode ser melhor ou pior, mas não há fraude. Se há um conflito entre a literatura e o cinema, na passagem de uma para o outro, há um conflito ainda mais grave: a passagem de um livro, de um romance, de uma língua para outra. Recordo-me que o José Régio foi convidado para fazer a tradução da Divina Comédia. Mas recusou, afirmando ser uma loucura. Para o fazer, teria que estudar o italiano... E disse: “O resto da minha vida seria pouco para fazer uma tradução que se aproximasse do original”. Isto é alguém que tem a noção de que fazer uma tradução é uma coisa extremamente difícil e, por melhor que seja, será sempre insuficiente. A expressão idiomática é outra. A ideia passa, mas vagamente. É um problema insolúvel. É como a Comunidade Europeia: há muitas línguas que estão a ser esmagadas.
Memórias e Confissões é um dos trabalhos conjuntos dos dois que permanecem por revelar...
A.B.L. – Esse é dos meus preferidos. É muito bonito, aquele da memória, a casa...
Querem falar sobre ele?
A.B.L. – O Manoel de Oliveira é que pode falar.
M.O. – O texto é lindíssimo. Eu pedi-lho, e a Agustina teve a gentileza de o escrever e de mo oferecer, até, pelo que lhe fico muito grato. É interessante, porque encaixa muito bem naquelas memórias e na representação de uma casa. Nisso somos diferentes. Com respeito a casas, eu sou muito mais gato e a Agustina é muito mais cão... Não conheço ninguém que tenha mudado tantas vezes de casa como a Agustina...
A.B.L. – Sim. Noutro dia, numa entrevista a uma jornalista vinda de Israel, que, de uma maneira muito inteligente, quis que eu lhe falasse da minha infância – porque, quando se fala da infância, fala-se de tudo –, tive oportunidade de lhe dizer que, ao longo da vida, mudei 19 vezes de casa. Eu tenho o mesmo feitio do meu pai, uma instabilidade muito grande, sempre à procura do paraíso perdido. Não me prendo às casas. Tenho recordações, por exemplo, da casa em Esposende, com um pinhal – o livro que agora estou a escrever é quase uma recriação fotográfica de tudo aquilo. Mas realmente não sou como o gato.
Têm mais algum projecto comum?
M.O. – Não há nada. Há uma coisa que é preciso dizer: na nossa amizade – que é muito grande da parte dela, porque tenho provas disso, e que também é muito grande da minha parte, porque sou eu próprio que sinto e que sei –, há um grande conflito ao mesmo tempo. Nós somos muito conflituosos...
A.B.L. – Sim, mas com grande cortesia.
M.O. – Graças a Deus, com uma grande cortesia. O Convento chamava-se A Pedra-de-Toque. E foi a pedra-de-toque dessa amizade.
A.B.L. – Sabe que há uma personagem de uma peça de Shakespeare que se chama Pedra-de-Toque? É o Touchstone, que é o bobo, aquele que revela o sentido das coisas. Eu achei muita graça, porque só depois de chamar a O Convento A Pedra-de-Toque é que descobri que havia essa personagem.
M.O. – Mas A Pedra-de-Toque depois não se fez, porque havia uma certa discordância entre o livro e o filme. É que o livro atrasou-se e eu avancei...
A.B.L. – O livro atrasou-se e mesmo eu acho que ele precisava ainda de mais tempo. E para haver uma concordância entre o que eu queria exprimir, porque era muito complicada, era a ideia da revelação. E depois disso já houve mais trabalhos sobre o Shakespeare, sobre quem era e não era, e afinal se era um senhor chamado Shakespeare ou não. Não está esgotado esse tema. E o facto de eu ter descoberto aquele indício de que haveria uma família de judeus espanhóis que seriam os antepassados de Shakespeare...
M.O. – Mas isso está expresso no filme.
A.B.L. – Pois está, mas eu gostaria que fosse dada mais ênfase.
M.O. – Isso não poderia ser.
A.B.L. – Refiro-me a mim, na escrita do livro. Eu hoje escreveria o livro de outra maneira.
M.O. – Sim, mas quem lá meteu o Diabo foi a Agustina, não fui eu. E, é claro, tudo vem daí.
A.B.L. – O Diabo hoje está em toda a parte. Um filósofo árabe dizia: “O centro do mundo onde o Mal e o Bem se encontram” – aí é o reino de todos os demónios. Eu acho que esse centro do mundo hoje se espalhou por toda a parte.
[PÚBLICO, 01/09/1996]“Manoel de Oliveira não frequenta o enigma”A Mãe de um Rio
, texto de Agustina, é um dos três episódios que compõem “Inquietude”. Pretexto para ouvir a escritora sobre o modo como Oliveira trata o tema da mulher nos seus filmes.
Nos trabalhos de ambos, é o Manoel de Oliveira que lhe pede os textos, ou é a Agustina a propor-lhos?
É mais ele a solicitar os textos. Eu respeito isso. Ele é um cineasta que tem aquele seu mundo criativo. E se acha que para fazer um filme gostaria de adaptar um livro meu... Eu até prefiro assim.
Que lugar pensa que o realizador tem na cultura portuguesa?
É uma figura muito complexa, nada simples de definir. Até porque, como todos nós, de uma maneira mais ou menos marcada, tem uma dupla personalidade: uma coisa é a pessoa convivente e outra é a pessoa no seu mundo do cinema. Há uma diferença muito grande. No cinema, a grande qualidade e o génio do Manoel de Oliveira é ter, através daquele seu ar radioso, encantatório, um grande domínio sobre toda a gente que com ele trabalha. O outro lado é o convivente, uma pessoa afável, educada, que pode até parecer modesta na maneira de se exprimir. Sempre muito discreto e insinuante, sabendo desfazer-se das situações mais difíceis com uma certa astúcia. E, claro, isso faz dele também um homem mundano...
E quanto aos seus filmes?
É uma obra muito original. E é como tal que ele vai ficar. É uma figura do cinema mundial. Ainda que se possam encontrar desigualdades, lacunas, ele ficará na história do cinema pelo peso da sua originalidade e, sobretudo, pelo desejo de transcendência que apresenta nos seus filmes.
Uma das marcas da obra de Oliveira é a maneira como trata a figura da mulher, que vê ao mesmo tempo como o máximo de ingenuidade e como um extremo de perversidade...
A experiência que teve das mulheres
–
possivelmente, experiências da primeira juventude
–
determinou a visão que ele tem do mundo feminino: desse lado da mulher mítica, virginal, até ao lado mais tenebroso da mulher, que nunca é completamente revelado, é suspeitado. Esse lado de perversidade que o homem consegue nomear, mas não consegue esclarecer. Isso encontra-se em várias figuras de mulheres: o Manoel de Oliveira, nos momentos em que podia encontrar-se frente a frente com o enigma, foge dele, deriva, através da ironia. E nos filmes, muitas vezes, através do burlesco. Talvez que o que há de mais profundo, ele não o queira revelar. É uma fuga, ou melhor, uma forma de iludir e de se iludir a si mesmo. Não quer enfrentar esse enigma. Enquanto eu gosto de enfrentar o enigma
–
isso está relacionado com o meu lado britânico; o enigma tenta-me e interessa-me
–
, o Manoel de Oliveira não frequenta o enigma. Se há entre nós alguma divergência, é essa.
Qual o filme de que mais gosta na obra de Oliveira?
Gosto do
Aniki-Bóbó, que não é um filme para se ver de uma só vez. É preciso ter uma grande maturidade... Ele foi precoce no cinema mundial com esse filme...
Há quem diga que antecipou o neo-realismo...
Sem dúvida. Foi uma coisa nova, no cinema mundial. Depois desse, há tantos... Mas, sobretudo, gostei do
Vale Abraão. É um grande filme.
Apesar de achar que ele se desviou demasiado do seu texto?
Houve um momento em que achei isso. Mas o filme é a criação dele. Plasticamente, ele soube ir muito bem ao livro buscar os momentos que eu não privilegiei. Também gostei do
Party; é um dos meus filmes preferidos.
Aí, Oliveira foi mais fiel ao seu texto...
Sim. Ele pediu-me mesmo um guião. E isso, eu gostaria de ter feito com ele com mais frequência. Enfim, foi uma colaboração que eu diria que foi feliz. E que espero que continue.
Encontram-se muitas vezes?
Não nos encontramos muitas vezes. De resto, não me encontro muitas vezes com ninguém. Mas isso não quer dizer que as pessoas não estejam a povoar os meus momentos, os meus silêncios.