O Orpheu e a sua circunstância
A revista Orpheu abriu novos caminhos na literatura portuguesa, permitindo questionar o homem e os seus abismos e levar a limites desconhecidos a invenção da escrita e da palavra.
Ainda não se tinham apagado os efeitos das incursões monárquicas de 1911 e 1912, no Norte do país, nomeadamente em Chaves, persistia o objetivo da restauração monárquica: intrigas e conspirações para ataques à República, já reconhecida por todos os Governos do mundo. A arrancada do grupo do Integralismo Lusitano recuperava o pensamento contrarrevolucionário, em revistas e jornais próprios e no auge dos conflitos militares e políticos, um ciclo de conferências na Liga Naval, em Lisboa.
Houve, também, no campo dos republicanos, oposições dilacerantes. Agravaram-se as querelas que fragmentaram a maçonaria, o Grande Oriente Lusitano Unido, liderado por Magalhães Lima, dando origem a outra obediência, o Grémio Luso-Escocês, dirigido pelo general Ferreira de Castro. Saíram do Grande Oriente lojas de todo o país. A dissidência envolveu muitos civis e militares dos partidos Evolucionista, de António José de Almeida, Unionista, de Brito Camacho, e do próprio Partido Democrático, de Afonso Costa.
O Movimento das Espadas, em 20 de Janeiro de 1915, foi o rastilho das muitas contestações. Manuel de Arriaga chamou o general Pimenta de Castro para formar um Governo que seria a primeira ditadura na República. Parlamento encerrado, adiamento de eleições, saneamento de altos quadros da função pública. Censura nos órgãos de comunicação social.
Entretanto, registou-se, a 14 de Maio, a mais sangrenta das revoluções da I República, 24 horas de fogo cerrado, mais de 100 mortos e mais de 1000 feridos em estado grave só em Lisboa. Houve a queda do Governo presidido por Pimenta de Castro, a renúncia de Arriaga; o regresso de Teófilo Braga à chefia do Estado, até se efetuarem eleições, para repor a Constituição de 1911 e consolidar os fundamentos do regime.
À margem desta agitação partidária, que se estendeu de norte a sul do país, acentuando todas as incógnitas, todos os pressentimentos, todas as fatalidades, a 25 de Março de 1915, precisamente há 100 anos, concluiu-se na Tipografia do Comércio, na Rua da Oliveira, ao Carmo, e para ser posto à venda, em Lisboa, no dia seguinte, a 26 de Março, o Orpheu 1. Também na mesma tipografia, será composto e impresso, em Junho de 1915, o Orpheu 2. Várias tendências literárias e estéticas avultam na diversificada e heterogenia colaboração de Fernando Pessoa (e Álvaro de Campos), Mário de Sá-Carneiro, Almada Negreiros, Alfredo Guisado, Luís de Montalvor, José Pacheko, Raul Leal, Armando Côrtes-Rodrigues, (Violante de Cysneiros), Santa-Rita Pintor e, ainda, de dois poetas brasileiros, Ronald de Carvalho e Eduardo Guimarães. Sem escrever uma linha, António Ferro foi o editor.
Entre a publicação e o lançamento do Orpheu 1 e do Orpheu 2 ocorreu uma cisão no grupo que se refletiu nas relações pessoais dos diretores e colaboradores da revista. Fernando Pessoa, através do heterónimo Álvaro de Campos, dirigiu uma provocação sibilina a Afonso Costa, que considerava um feroz e detestável adversário. Afonso Costa estava hospitalizado e era objeto de contínuas provas de solidariedade. (Júlio Dantas chorou, na sua crónica semanal, na Ilustração Portuguesa). Afonso Costa saltara de um elétrico, em andamento, julgando que era uma bomba. Sofreu graves ferimentos. Álvaro de Campos, em declaração publicada n'A Capital, insinuou com ironia perversa: “Numa hora tão deliciosamente mecânica, a própria Providência Divina serve-se dos carros eléctricos para os seus Altos Ensinamentos”.
Numa carta aberta, no jornal O Mundo, Alfredo Guisado e António Ferro, ambos republicanos, ambos do Partido Democrático de Afonso Costa, repudiaram o comentário de Álvaro de Campos. Deixaram de colaborar no Orpheu. Também se demarcou Mário de Sá-Carneiro e, em especial, Almada Negreiros. Apesar de católico praticante, monárquico assumido e muitos anos aluno interno do Colégio de Campolide dos Jesuítas, Almada deslocou-se, pessoalmente, a 7 de Julho de 1915, à redação d’A Capital para esclarecer que a frase de Álvaro de Campos resultara de “manifesto estado de embriaguez”. Foi a primeira alusão pública ao alcoolismo de Pessoa, antes da fotografia a “decilitrar” na taberna de Abel Pereira da Fonseca.
Três nomes do Orpheu vão evidenciar-se e definir o futuro: Fernando Pessoa (ortónimo e heterónimo), Mário de Sá-Carneiro e Almada Negreiros. A política democrática e, mais tarde, o anti-salazarismo militante de Alfredo Guisado afetou-lhe a criação poética. Mesmo assim, Alfredo Guisado, “o mais injustamente esquecido poeta do Orpheu” no entender de Óscar Lopes e Vitorino Nemésio (Jornal do Observador), foi, na época, o que teve maior aceitação, influenciando os primórdios, por exemplo, de Cabral do Nascimento e José Gomes Ferreira.
Poetas e intelectuais das gerações seguintes acusaram o forte impacto causado pelo Orpheu, sobretudo por Fernando Pessoa e os seus heterónimos. E, cada vez mais, traduzido em todo o mundo, o semi-heterónimo Bernardo Soares do Livro do Desassossego. Ficamos a “ler o que nunca foi escrito” para mencionar Hofmannsthal, uma frase citada e aplaudida por Walter Benjamim.
O Orpheu projetou-se no grupo e na geração da Presença, nos Surrealistas, nos neorrealistas, nos Cadernos de Poesia e em sucessivos outros movimentos literários até aos nossos dias. Através de, apenas, dois números da revista Orpheu abriram-se caminhos surpreendentes na literatura portuguesa. O Orpheu permitiu questionar o homem e os seus abismos. Perder-se e encontrar-se nos labirintos. Criar novos imaginários. Levar a limites desconhecidos a invenção da escrita e da palavra.
Jornalista e investigador, da Classe de Letras da Academia das Ciências