“Do que temos medo é do depois”
Logo depois do ataque, a equipa de cartoonistas e jornalistas começou a trabalhar no novo número. Choraram, riram, desenharam – aguentaram-se o tempo que foi preciso para fechar o jornal. Mas a adrenalina do medo e da emoção passam e já se perguntava: como vai ser a seguir?
"Habemus capa" disse, sorrindo, Gérard Biard, o chefe de redacção do jornal, ao sair da redacção improvisada e usando a frase que anuncia um novo Papa. Explicou como tentaram chegar à imagem certa: "Perguntámos a nós próprios: ‘O que queremos dizer? O que devemos dizer? E de que forma?’ Sobre o tema, infelizmente, não tínhamos dúvidas."
Desde sexta-feira, apenas dois dias depois de homens armados terem massacrado 12 pessoas no jornal, que 25 membros da equipa se reuniram nas instalações do jornal de esquerda Libération, debaixo de pesada protecção policial, para preparar o novo número. Ainda estavam em choque e desconcertados por, de repente, serem os heróis da liberdade de expressão perante os mesmos sistemas político e religioso que há muito satirizavam.
Ao mesmo tempo que os jornalistas lidavam com a tristeza, havia notas de humor mordaz. Os cartoonistas desenhavam, enquanto descreviam como foi difícil continuar depois do horror na sua redacção; outros expressavam a sua raiva em relação aos assassinos. A grande pergunta que pairava no ar: como conseguiriam ter piada num momento destes?
"Nós não sabemos fazer outra coisa a não ser rir", disse Biard, que estava de férias no dia do ataque.
Por todo o mundo, o massacre motivou um debate sobre falhas de segurança, radicalismo islâmico e aquele ter sido um ponto de viragem. Milhões de pessoas abraçaram o slogan "Eu sou Charlie". Mas aqui, numa sala de conferências no topo do edifício, com uma vista deslumbrante para a Torre Eiffel, só estavam um grupo de cartoonistas e de jornalistas: chorando, petiscando, rindo, violando a lei que proíbe fumar em espaços fechados e tentando aguentar-se o tempo suficiente para produzir um novo número.
A primeira reunião editorial, na sexta-feira, não começou com tiradas ou provocações editoriais, mas com a lembrança dos colegas assassinados, com o ponto de situação sobre os feridos e com a visita surpresa do primeiro-ministro, Manuel Valls, e de Fleur Pellerin, ministra da Cultura e das Comunicações — visitas raras na redacção de um jornal de quem só podem esperar troça e não um pedido de entrevista.
"Decidimos fazer uma edição normal, não um número de homenagem", disse Biard na sexta-feira, dia em que decorreu uma reunião de três horas. Para a sala foram levados tabuleiros com salmão fumado, sanduíches e sobremesas com creme. Uma fiada de polícias à paisana guardou a porta. Cinco computadores cedidos pelo Le Monde foram montados numa mesa redonda de vidro. Desde os ataques, os donativos não páram de chegar, e foi criado um fundo — jaidecharlie.fr (Eu ajudo Charlie).
À medida que a redacção voltava à vida, na sexta-feira à tarde, Biard reflectia. "Eles mataram pessoas que desenhavam cartoons. Só isso. Era só o que estas pessoas faziam. Se têm medo disso..., que deus é o deles?", perguntou enfaticamente.
Montar a logística para fazer sair o jornal não foi fácil. Foi preciso arranjar autorizações do tribunal para retirar material que estava na antiga sede, agora fechada, porque é uma cena de um crime. Com a ajuda do Libération, o Charlie Hebdo imprimiu três milhões de cópias; a sua tiragem habitual é de 600 mil exemplares. Previa-se também que o jornal fosse traduzido em várias línguas.
Uma ideia estava clara: manter a memória dos mortos viva publicando trabalhos antigos deles. E nesta edição haverá desenhos dos cinco cartoonistas mortos: Stéphane Charbonnier (Charb, o director), Jean Cabut (Cabu), Bernard Verlhac (Tignous), Georges Wolinski e Philippe Honoré. Também decidiram homenagear as outras vítimas, publicando trabalhos de Bernard Maris, um economista, e de Elsa Cayat, psiquiatra, que escreviam colunas, e talvez publicar uma coluna inédita de Mustapha Ourrad, que era o revisor de texto.
"Neste número eles não mataram ninguém", explicou Biard. Os membros da equipa "aparecem como sempre apareceram". Questionado sobre o que mais teria este número, Patrick Pelloux, médico que também escreve no Charlie Hebdo, respondeu, com uma gargalhada: "Oh, não sei. Não se passou grande coisa esta semana."
Na sexta-feira à tarde, Luzier, de 43 anos, estava a desenhar um Arnold Schwarzenegger insuflado a rasgar um Charlie Hebdo ao meio. Na sua mesa, algumas beatas flutuavam dentro de uma garrafa de água.
Na quarta-feira da semana passada foi o aniversário de Luzier. Ele a mulher ficaram na cama até mais tarde, depois ele saiu para comprar um bolo e chegou ao trabalho após o ataque. "Fui salvo pelo amor e pela gula", disse Luzier. Abanou a cabeça: "As pessoas que vieram para os matar são fanáticos e assassinos, mas, antes de tudo, são pessoas sem sentido de humor."
A mãe de Simon Fieschi, o webmaster que vigiava a caixa de correio do jornal, sempre cheia de mensagens de ódio, e que está em coma induzido, entra na sala. Luzier levanta-se e dá-lhe um longo abraço, em silêncio. Também ficaram feridos o cartoonista Laurent Sourriseau (Riss), atingido num ombro; Fabrice Nicolino, jornalista a quem foi amputada parte de uma perna; e Philippe Lançon, jornalista do Libération que escrevia a coluna sobre televisão. Foi atingido na cara, mas deverá sobreviver.
No sábado, os membros da equipa começaram a chegar pelo meio-dia. Na parede da sala de conferências começaram a aparecer cartoons. Lá dentro, ouvia-se alguém a chorar. Corinne Rey, conhecida por "Coco", sentou-se na mesa e, de pincel na mão, começou a desenhar. Contou que os homens armados a obrigaram a marcar o código que lhes abriu a porta da redacção.
Quando os homens armados chegaram, alguns pensaram que era uma brincadeira, disseram membros da equipa. Depois de anos de ameaças, Charbonnier até fez uma piada sobre os jihadistas a gritarem "Allahu akbar" (Deus é grande), disse Zineb El Rhazoui, 32 anos, jornalista do Charlie Hebdo que cresceu em Marrocos e que com Charbonnier fez uma biografia em cartoon de Maomé.
"Era o grito de guerra dele: ‘Allahu akbar isto’, ‘Allahu akbar aquilo’", contou Coco. "Costumávamos dizer-lhe a brincar que tinha de parar com aquilo porque um dia os assassinos apareciam mesmo para nos matar e não íamos saber se eram eles ou Charb a gritar."
O trabalho parou no domingo, quando se realizou a manifestação de denúncia da violência que juntou os líderes mundiais e mais de 1,5 milhões de pessoas nas ruas de Paris. Marchando na fila da frente, muitos dos trabalhadores do Charlie Hebdo usaram fitas brancas no cabelo com a inscrição "Charlie", um sinal do paradoxo que era este semanário que se posicionava do lado de fora do sistema estar subitamente na linha da frente de um confronto global. Na manifestação, Pelloux chorou no ombro do Presidente François Hollande, quando este foi cumprimentar a equipa e os familiares dos mortos no jornal e no supermercado judeu.
Pelloux estava numa reunião de médicos socorristas quando recebeu uma chamada a avisá-lo do ataque. Chegou ao local com outros colegas e viu a carnificina na sala ainda cheia do fumo das armas. Começou a ver quem estava vivi e quem estava morto. "Eu vi cadáveres", disse. Mas aquilo "era uma loucura". "Eu não devia estar vivo", disse numa entrevista em que mostrou estar traumatizado e sentir culpa por ter sobrevivido.
Enquanto a equipa trabalhou durante toda a semana, os polícias à paisana permaneceram à porta da sala. Um disse que certa vez foi destacado para a segurança de Marine Le Pen, a líder do partido de extrema-direita Frente Nacional. Os polícias também perderam colegas no ataque de quarta-feira no Charlie: Franck Brinsolaro, que fazia a segurança a Charbonnier. A equipa disse que Brinsolaro já era mais um membro desta família unida; no Natal levou para a redacção o pâté caseiro da mãe.
O Charlie Hebdo foi fundado em 1970, herdeiro do Hara-Kiri, que também dirigia as suas ofensas à Igreja Católica, ao judaísmo e ao islão, e também tinha alvos seculares, como os políticos. Acreditava na blasfémia.
"A única coisa sagrada é a liberdade de expressão", disse Rhazoui. Os cartoons de Maomé eram os que produziam as maiores ameaças. Foram processados por difamação ao publicarem os cartoons de Maomé que apareceram, originalmente, num jornal dinamarquês, em 2005, e ganharam o caso. Em 2011, a sede anterior do jornal foi atacada com bombas incendiárias depois da publicação de uma edição especial "Primavera Árabe", em que Maomé surgia como "director convidado" e também num cartoon que o mostrava com um nariz de palhaço e a frase "100 chicotadas se não morrerem de riso". Os autores do atentado nunca foram encontrados.
Desde então, o jornal tinha, em todas as suas edições, uma tarja a dizer "publicação irresponsável", uma dica para os críticos que disseram que "estavam a pedi-las". "Sentimo-nos muito sozinhos [depois do ataque de 2011]", disse Laurent Léger, jornalista de investigação no jornal desde 2009 e que na semana passada sobreviveu agachando-se e escondendo-se e que previa escrever para esta edição uma peça sobre a investigação aos ataques.
Léger disse estar confiante em como a equipa se iria esmerar neste número, mas estava preocupado com as próximas semanas. "Do que temos medo é do depois"
*Com Rukmini Callimachi
Exclusivo PÚBLICO/The New York Times