Maomé era "inevitável" na capa do Charlie
Uma primeira página expectável para João Paulo Cotrim e "um testemunho de perseverança" para Osvaldo Macedo de Sousa. “Este desenho não é para rir.”
Luz desenhou numa sala que não é sua, numa redacção guardada por polícias que não a do semanário satírico onde trabalha há 20 anos. Foi segunda-feira à noite a eureka de Rénald Luzier, aliás "Luz", no espaço que o diário Libération ofereceu aos sobreviventes do ataque de dia 7. Numa conferência de imprensa na terça-feira, o cartoonista estava emocionado. “Escrevi ‘Sou Charlie’ e ele chorou”, descreveu a propósito da reacção do editor Gérard Biard. “Depois escrevi ‘Tudo está perdoado’ e chorei. E já a tínhamos – tínhamos a nossa primeira página. Não é a primeira página que o mundo queria. Não é a primeira página que os terroristas quereriam – não há lá terroristas. Só um tipo que está a chorar.” E que, segundo o cartoonista, “é muito mais simpático do que o que os terroristas brandem – é compreensivo”.
Um “tipo” que é o profeta do islão, um “tipo” cuja representação imagética é considerada heresia – aliás, os muçulmanos consideram blasfema qualquer representação de profetas, como Abraão ou Moisés. “É um trabalho muito interessante”, considera Osvaldo Macedo de Sousa, que lembra que na semana passada o jovem ilustrador português Vasco Gargalo desenhou também um Maomé que é Charlie, fundo verde e ar solene. Mas sem lágrima, como o de Luz – que sobreviveu por ter chegado tarde à reunião de redacção na semana passada.
“Por um lado, é um testemunho de perseverança – não têm medo e se for preciso caricaturam Maomé. Por outro, é um manifesto, porque o que está em jogo não é o islão, o islão não é terrorismo, mas sim facções do islão que usam o terrorismo”, defende ao PÚBLICO o comissário do festival Amadora BD, que reconhece que esta imagem na primeira página do Charlie Hebdo dos sobreviventes “continua a ser uma blasfémia para certos sectores do islão”.
Numa conferência de imprensa em que ficou prostrado, apoiado nos colegas Biard e Patrick Pelloux, Luz explicou: “[Sabia que tinha de fazer] um desenho que acima de tudo nos faça rir, e não um da carga emotiva de que somos vítimas.” O humor, a inocência de brincar por brincar como na infância, fê-lo desenhar a dizer para si mesmo: “Sou Charlie.” “Mas não era suficiente.” Maomé, que os tornou “tanto cavaleiros brancos como provocadores, quando acima de tudo”, defendeu, são “cartoonistas que desenham pessoas pequeninas, como fazem as crianças”, era incontornável. “Para dizer que nada muda, apesar do atentado, que não é com a morte que vão travar esta religião que é a liberdade”, diz João Paulo Cotrim, ex-director da Bedeteca de Lisboa.
Era a capa esperada? É Charlie? Para Macedo de Sousa, sim. “Nada é sagrado, tudo é sagrado para eles.” “Está a ser entendida como uma nova provocação, mas neste caso tinha mesmo de ser uma provocação”, crê Cotrim.
Num jornal satírico que produziu este número em luto, podia fazer-se uma capa engraçada, que faça rir? “Até é meiga, bem-comportada”, considera o antigo director da Bedeteca de Lisboa. “Não é uma capa que me faça rir às gargalhadas. É uma sequência do que tem sido o sentimento consensual pelo mundo.” Para Osvaldo Macedo de Sousa, a sua força está na lágrima de Maomé. Não é, porém, necessariamente uma força para gargalhar. “O humor é uma forma de filosofia, de expressar uma opinião, é uma ideia lançada” para a inteligência de quem o recebe na expectativa do encontro entre desenhador e receptor. “Quando se atinge esse clímax de compreensão, pode dar-se a gargalhada”, considera, “que muitas vezes é uma gargalhada triste”. E “este desenho não é para rir”.
“Maomé chora por se sentir traído, adulterado pelos homens. Eu [até] evidenciaria mais a lágrima de Maomé. O ponto humorístico não é Maomé a segurar ‘Je suis Charlie’, mas sim a força da lágrima.”
A muito esperada capa do “jornal dos sobreviventes” acolhe assim uma figura que há muito era visada pelo semanário satírico e que muitas ameaças de morte gerou ao seu director, Stéphane Charbonnier. E que dividiu os órgãos de informação na altura de mostrar. O Libération, o Le Monde, o Frankfurter Allgemeine, o Corriere della Sera, o El País, o La Vanguardia, o Washington Post, o USA Today, o LA Times, ou o Wall Street Journal publicaram-na online. Outros, como a BBC (que só a incluiu num programa nocturno) ou o New York Times, optaram por não a mostrar, e o Guardian mostra-a com um aviso quanto à natureza sensível da imagem.
O Conselho Francês da Religião Muçulmana e a União de Organizações Islâmicas Francesas apelaram em comunicado à comunidade muçulmana que permaneça “calma e evite reacções emotivas incompatíveis com a sua dignidade”, evocando o “respeito pela liberdade de opinião”. Já o grande mufti egípcio (a mais alta autoridade religiosa do país) considerou, por seu turno, que esta capa “vai causar uma nova vaga de ódio na sociedade francesa e ocidental em geral”, defendendo que é racista – uma acusação frequente feita às caricaturas do Charlie Hebdo. João Paulo Cotrim identifica essa outra camada de possível "irritação", mas não vê “como desenhar uma caricatura sem usar estereótipos, porque a caricatura é a manipulação ao limite do ridículo do estereótipo”.
O príncipe da Jordânia Hassan bin Talal, citado pelo Guardian, disse que “se o cartoon tivesse escrito ‘Eu sou Ahmed’, dado que muitos usaram essa frase em homenagem ao polícia Ahmed Merabet que foi morto [também no ataque ao Charlie Hebdo], talvez não tivesse posto mais sal na ferida, mas levado as coisas a outro nível”. Já o antigo primeiro-ministro francês François Fillon considera a capa “magnífica” e compassiva. “Não pode haver debate quanto à liberdade de expressão, nunca”, disse à France Inter.
Na conferência de imprensa, Luz disse não estar “nada preocupado com a nova capa”. “Depositamos a nossa confiança na inteligência das pessoas, no humor, na ironia. As pessoas que levaram a cabo este ataque simplesmente não têm sentido de humor.”
A redacção tinha já anunciado não querer fazer um jornal-memorial, nem uma edição de obituários. Business as usual e gente solene com lágrimas, mas nem tanto. Antigos cartoons de Stéphane Charbonnier (ou Charb), Georges Wolinski, Jean Cabut (Cabu), Bernard Velhac (Tignous) e Philippe Honoré, bem como textos de Bernard Maris e Elsa Cayat, colunistas também mortos no atentado, vão estar nas 16 páginas do jornal, cuja tiragem normalmente ronda os 60 mil exemplares e que na quarta-feira é vendido em 25 países e traduzido em 16 línguas, sendo também publicado com alguns jornais como o turco Cumhuriyet. Há também outro cartoon de Luz em que os terroristas chegam ao céu e pedem pelas suas 70 virgens para descobrirem que elas estão com a equipa do Charlie. E outro cartoon alfineta a Igreja Católica com uma imagem da manifestação de milhões de domingo: “11 de Janeiro, mais pessoas para o Charlie do que para a missa.”
Notícia corrigida às 08h27: número da edição do jornal