Uma “religião” chamada liberdade
Enquanto procura sarar as feridas, a França enfrenta desafios que não são só dela, são de muitos milhões.
Ontem homenagearam-se os civis e polícias mortos, hoje regressa às bancas o Charlie Hebdo. É como se, aos poucos, depois das gigantescas manifestações de dia 11 (mais um dia 11 na história do terrorismo, desta vez para marchar pela liberdade), a França procurasse um caminho para lá do sarar das feridas, um caminho que não a afaste do que em público “jurou” em silêncio: defender as liberdades dos seus cidadãos. As cerimónias, em França (na sede da polícia parisiense e no cemitério muçulmano de Bobigny) ou em Israel (no cemitério de Har HaMenuhot), foram sentidas, honrando a memória das vítimas. Já o Charlie Hebdo, sem vacilar, embora temendo pelo futuro, tentou recuperar o seu espírito inconformista, voltando a desenhar Maomé, um Maomé triste, a segurar um cartaz onde se lê “Je suis Charlie” e a derramar uma lágrima, sob a frase “Está tudo perdoado”. É, talvez, uma forma brutal de exprimir a não-violência, a ideia de concórdia e de um perdão onde milhões não imaginam havê-lo. Mas terá sido a única possível para uma “religião” chamada liberdade. Ninguém é obrigado a concordar com o Charlie Hebdo, já se disse e repetiu mil vezes, mas a sua livre existência é uma prova de que o essencial do valor que damos à liberdade não foi sacrificado: o poder ser, em matéria de opiniões ou crenças, diferente, contraditório, mesmo provocatório, sem constrangimentos prévios nem espartilhos censórios. É essa “religião”, demasiado simples, que permite o livre curso a todas as outras, sem as condicionar. Os que julgam poder abater tal “religião” a tiro, perderam. E perderão ainda mais se a França, nas medidas que discute para diminuir os riscos do terrorismo, cumprir as promessas de Valls: “O Estado protege tanto aqueles que crêem, como os que não crêem”; ou “Não adoptaremos, jamais, medidas que estejam em desacordo com os princípios da lei e com os valores da nossa democracia ou que ponham em causa o Estado de Direito”.