O que é ser mulher num sítio onde tem de se ser mulher?

A partir de quinta-feira, Cântico toma conta do Animatógrafo do Rossio, em Lisboa, invertendo o sentido do desejo. Dentro da cabine, o espectador será convidado não tanto a desejar quanto a ser confrontado com o desejo de quatro mulheres.

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O texto, embora possa não o parecer em toda a sua lubricidade, pertence ao Cântico dos Cânticos, atribuído a Salomão e incluído no Velho Testamento. E foi identificado como o motivo perfeito para Ricardo Boléo e Cátia Terrinca, fundadores do UmColectivo, habitarem entre 25 e 30 deste mês o peep-show do Animatógrafo do Rossio, em Lisboa. Da parte de Boléo havia a vontade de explorar o mecanismo do peep show isolando o espectador; do lado de Terrinca veio a escolha do texto, caído à sua frente numa mudança de casa. “Para mim fazia muito sentido neste espaço pela subversão”, defende a actriz. “Por ser a mulher que deseja, por ser um gesto marginal perante o poder. Na altura, o poder religioso." Agora, é o espaço do peep show que simboliza a marginalidade diante do julgamento social. A conjugação dos dois seria determinante, mas a ideia de encenar um texto com forte sugestão sexual viria, inadvertidamente, do espectáculo que, meses antes, levaram à cena nos Primeiros Sintomas, baseado em escritos de Fernando Pessoa. “Quando nos deram o texto que Pessoa escrevera em guardanapos, aquilo tinha seis páginas e alguns lapsos de informação”, lembra o encenador. Dessas seis páginas de um texto que se lia em dez minutos, nasceu Inércia, uma peça que durava quase uma hora, devido às “suspensões de pensamento e de corpo” com que preencheram os espaços. “Isso tornou a cena muito erótica”, reconhece Boléo. “Mas não foi uma coisa premeditada.”

Se da primeira vez o erotismo foi acidental, agora é precisamente esse o ponto de partida que quiseram explorar. E explorá-lo a partir do interior, das entranhas de um espaço em que a sugestão sexual é dada por adquirida. Esse é outro desafio, na verdade, o de recentrar um pouco aquilo de que se fala ou, pelo menos, de tentar esticar estes conceitos – algo a desenvolver, paralelamente, no ciclo de debates Janela Marginal. “Para mim”, diz Cátia Terrinca, “pode ser interessante o erotismo estar mais relacionado com um lugar de construção íntimo e da imaginação de cada um, mais do que com algo sexual.” O papel do espectador de uma peça erótica deve, por isso, permitir a idealização individual a partir das referências pessoais. “É esse tipo de erotismo que está em causa”, insiste Terrinca. “Não é só o erotismo do corpo e da sexualidade. É o erotismo da intimidade de cada um.”

Quatro mulheres num espaço que se assemelha a uma arena, portanto, num combate estabelecido: assaltar a intimidade de quem assiste, interpelar directamente espectadores e, de alguma maneira, devolver a curiosidade daqueles que poderão, a troco de uma moeda, como num vulgar peep show, entrar numa cabine e espreitar para o seu interior. Lá dentro estarão mulheres não tanto a expor-se quanto a invadir quem assiste, tentando destronar a passividade. Mas também num estado bendito, confessa Cátia Terrinca. “Sinto-me abençoada por ter alguém a olhar para mim durante uma hora e a ouvir-me. Não tenho esse privilégio na minha vida. Com quantas pessoas namorei e vivi que não me deram isso?”

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Tanto Ricardo Boléo como Cátia Terrinca falam dessa mera presença de outra pessoa como uma questão erótica por si só, mas que convoca igualmente a ideia de teatro, de lugar a partir do qual se tenta decifrar o mundo. Acresce que o acesso facilitado ao espaço – “tem sido mais fácil do que trabalhar com teatros”, garantem – e a pesquisa de meses permitiu ir estabelecendo ligações nervosas entre a peça que apresentarão às 23h, no final de cada 12 horas de apresentações da regular actividade do Animatógrafo. Nesse contacto próximo, Cátia encontrou “um espírito de camaradagem feminina que é muito raro”. “Transportámos isso para a dramaturgia deste espectáculo, em que somos mulheres que se ajudam.” Em busca de semelhanças entre as funções do teatro e do peep show – “são ambos um trabalho de exposição, sobre o corpo, sobre o eu, e têm algo de manifesto” –, a fronteira definitiva havia de estabelecer-se na visão definitiva sobre aquilo que entendem passar-se no peep show. “Nós vemos o que fazemos como um espectáculo, mas para elas aquilo é um ofício. O ofício para mim é o ensaio. Elas não ensaiam”, compara a actriz.

Aos poucos, foram também percebendo que queriam aproximar-se da ferramenta de trabalho das performers do Animatógrafo: a representação do feminino. Até porque Boléo e Terrinca queriam habitar o espaço sem ironia, e não como simples cenário. “Há dias perguntavam-nos se a loja iria ter os DVD e os vibradores expostos”, espanta-se o encenador. “Claro que vai ter, vai funcionar normalmente. Não queremos chegar lá e transformar aquilo numa outra coisa.” Do lado das actrizes, entrar na arena implica reflectir sobre o que significa ser mulher. Daí que Cátia ande a repetir-se uma pergunta fundamental: “o que é ser mulher num sítio onde tenho de ser mulher?” Dentro do peep show, diz, “é uma obrigatoriedade”. Não lhe basta andar, respirar, ir a uma casa de banho com sinaléctica distintiva, ser tratada por um nome inequívoco, conhecer os seus ciclos biológicos, identificar-se num formulário ao fazer um X à frente da letra F. Ali, fechadas entre quatro paredes, observadas por 32 pares de olhos, as quatro terão de ser uma mulher que, de fora, seja vista como mulher.

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