Hoje morre Walter Benjamin

O músico português Luís Nunes está farto do seu pseudónimo e de cantar em inglês. Para matar Walter Benjamin resolveu fazer uma grande festa, no Lux.

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Fez uma pausa e depois, com um sorriso entre o inocente e o maroto, atirou: “Às vezes é preciso um pouco de amargura”. Ninguém o diria, ouvindo o único disco de longa-duração que Walter Benjamin (o músico português, não o filósofo) lançou em formato convencional, The Imaginary Life Of Rosemary And Me. As oito faixas que o compõem são uma ode à pop imaculada, com sabor a chocolate branco e delicado cuidado no embrulho. Basta ouvir os coros, o órgão e a trompete de Under your dress para perceber que debaixo do cabelo desgrenhado deste rapaz de 28 anos jaz um cérebro que acumulou uma enciclopédia de melodias em ponto de rebuçado.E agora acabou, finito, no más: hoje morre Walter Benjamin. Não será uma morte convencional: em vez de jazer em casa, de mão dada com os familiares, fenecerá à frente de todos, no Lux, em Lisboa, por entre o que quer que seja “uma enorme festa”.

Impõe-se uma sinopse, né, que isto está confuso. Seja: há muito anos um crianço chamado Luís Nunes começou a fazer canções. De entre os vários projectos que imaginou havia um, de canções em inglês, a que resolveu chamar Walter Benjamin. Por mero acaso, cada vez que entrava no disco de outra pessoa, fosse como músico, misturador, produtor, Luís Nunes assinava como Walter Benjamin. Portanto, para todos os efeitos, Luís Nunes, para os melómanos, não existia, só havia Walter Benjamin – que hoje passará à história, pela simples razão de Luís ter decidido que vai, a partir de agora, cantar em português. E o inglês era pertença de Walter.

No more english

A culpa disto é da crise. Lembram-se quando a cúpula do PSD, com um humor danado, veio dizer aos portugueses que se calhar era melhor emigrarem, porque, devido às políticas que o governo se preparava para implementar, não ia haver muito emprego por cá? Pois bem, nessa altura já Luís Nunes se pusera a andar.


Fora para Londres, estudar engenharia de som. “O sonho sempre foi viver da música”, diz-nos entre sopas e sandes, uma refeição na ordem dos 5 euros que isto não está fácil, amigos. “Eu sou um pau para toda a obra – escrevo, arranjo, toco, produzo, misturo”. Ciente de que fazia tudo isto mas não o fazia obrigatoriamente bem, Nunes abalou para a terra de Dicknes a modo a conseguir “capacitar[-se] o mais possível”, no caso em engenharia de som.


Agora tem um estúdio montado na casa no Alvito, no Alentejo, onde vive desde que acabou o curso e regressou. “A casa é dos meus pais, pelo que não pago renda. E é grande, dá para montar lá o meu estúdio e gravar o que quiser, quando quiser – e isso é importante para mim, ter tempo para fazer as minhas coisas, enquanto ganho dinheiro de modo a pagar a gasolina para vir a Lisboa trabalhar. E o Alentejo é muito barato e há sempre gente a contar histórias, o que para quem quer cantar em português é importante”, conta.

Mas rewind e lá está ele em Londres “a ler as notícias da crise em jornais portugueses”. Alguma coisa aconteceu que fez Nunes sentir “uma vontade enorme de escrever sobre este universo específico que é nosso”. Talvez tenha sido o caso de sentir que “as [suas] canções não pertenciam a lugar algum: quando és português e cantas em inglês em Inglaterra – há milhares de pessoas que usam a língua melhor que tu e têm as referências certas. Como raio é que eu faria uma canção sobre a rua do Alecrim [em Lisboa] em inglês?”

Na base disto está uma espécie de ética, ou a visão que ele tem do que é a “obrigação de um músico”: “Tens de fazer a banda-sonora da tua época, da tua geração. É suposto cantares o que te rodeia e trabalhares de modo a conseguir que as canções tenham acesso directo às pessoas. E sabes que mais? Fiz uma canção sobre um vizinho alentejano, de 64 anos, e quando lha toquei ele chorou. Tem 64 anos”.

Portanto, no more english. The funny thing is, quando desatou toda a gente a cantar em inglês, Nunes estava lá, isto é, cá, no meio da gente que pôs em marcha a revolução – e foi-se embora no exacto instante em que o português se tornou a língua oficial da nossa pop.

Com dezoito anos gravou um EP de uma banda imaginária chamada Jesus The Misunderstood que “chegou à Antena 3 e à Radar”. Hoje diz que “não vale a pena ouvir” o disco – é uma expressão que usa para quase tudo o que fez, com a excepção do disco mencionado na abertura deste texto. Por exemplo, do primeiro EP como Walter Benjamin – projecto que começou “talvez” em 2006, quando estudava Antropologia – e que se chama The Dog Follows The Bull, diz ser “uma grande merda”. O nome Walter Benjamin surge no título do terceiro EP de B Fachada, Mini-CR Produzido Por Walter Benjamin. “Ainda não havia B Fachada e já tocávamos como Walter Benjamin”, refere o músico, de modo a situar-nos temporalmente.

“Esse é o disco em que ele começa a fazer canções. Lembro-me de estarmos no carro em direcção a um concerto e o Fachada pegar na guitarra e dizer 'Fiz uma canção'. Era a Mimi. Foi aí que soube que estava ali um grande compositor”.

Na altura editavam pela Merzbau, uma label online, nada de discos físicos com caixas de plástico. De então para cá o nome Walter Benjamin surgiu em várias obras nas mais diversas facetas: é ele o teclista e arranjador de Muda Que Muda, o espantoso segundo disco de João Coração, que resolveu mandar tudo isto às urtigas (volta, camandro), é ele o produtor de Dá, o disco de estreia de Márcia, é que ele que produz os You Can't Win Charlie Brown (YCWCB), é ele que grava Carmen Miranda, do Real Combo Lisbonense, que toca com Noiserv, etc.

Isto porque Nunes é o típico músico de músicos, o faz-tudo cujas teclas são um pequeno prodígio de imaginação e bom gosto. Nunes não é um auto-didacta: “Não fiz o conservatório, mas fiz um curso idêntico ao conservatório”. Falta-lhe o oitavo grau, nota, sempre pronto a diminuir-se. Começou pelo violino, mas, claro, “era péssimo”, pelo que passou para o piano. Mais tarde, e aí sim, por si mesmo, aprendeu guitarra. “Dá muito jeito para a pop, em particular porque podes tocar enquanto vês televisão”, atira, com o que parece ser um subtil humor auto-depreciativo que talvez tenha apanhado em Inglaterra, talvez seja mesmo assim.

Os músicos adoram-no pela sua versatilidade, ouvido e perfeccionismo. Coração diz maravilhas dele e não é o único: a lista de admiradores é tanta que na prática, hoje, estarão com ele em palco músicos suficientes para preencher duas equipas de futebol, três bandas, oito pares de sapatos: “Vai haver dois bateristas, o meu amigo Jacob Bazora e mais dois músicos nas teclas, três membros de YCWCB, a Francisca Cortesão, o Fachada, o Bruno Pernadas, o Manuel Dordio”. Todos juntos vão passar em revista a obra de Walter Benjamin, quase-defunto.

Quando Luís Nunes tinha cinco ou seis anos encontrou uma cassete de Beach Boys junto à aparelhagem dos pais e ficou viciado, ao ponto de “ir para a escola, cantar as canções e nenhum dos miúdos entender”. Mais de vinte anos depois, aquele senso de melodia e harmonia ainda o persegue. “Na primavera haverá no disco”, anuncia Nunes, “editado sob um nome que ainda está por decidir”. Vai ser cantado em português, uma tarefa mais complicada do que o que parece e que o levou, durante o último ano e meio, a fazer discos conceptuais só para si – um deles sobre carros, imagine-se – de modo a dominar a conjugação da língua com as melodias. Que ninguém duvide: vai haver mais alentejanos – e não só – a emocionarem-se. Entretanto, follow the party.

 

 

 

 

 

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