Entre a gratidão e a mudança
Seja qual for o resultado das presidenciais, o risco de o Brasil sair do seu trilho é relativamente pequeno. A democracia está consolidada e a economia assenta em bases suficientemente sólidas para dar a volta à falta de crescimento.
Também não vale a pena tentar transplantar para o sistema político brasileiro os conceitos próprios das democracias avançadas. No Brasil, esse sistema organiza-se em torno de um eixo central que se coloca muito mais à esquerda do que o europeu. Dizer que o PSDB de Fernando Henrique Cardoso e Aécio Neves professa uma ideologia “neoliberal”, supremo insulto, é mera ficção política, desde que se tenha em conta o que foi o neoliberalismo ocidental.
Fernando Henrique Cardoso (FHC) nunca foi um neoliberal. O Brasil deve-lhe o fim da hiperinflação (1000% ao ano), que afectava em primeiro lugar as pessoas com os mais baixos rendimentos, e a redução de um endividamento colossal ao exterior. Governou num momento de fraco crescimento da economia mundial e ainda não podia contar com as consequências da globalização que permitiram o crescimento rápido das novas economias emergentes. Cumpriu o seu papel, abrindo as portas à eleição de Lula da Silva e deixando-lhe os instrumentos económicos necessários para iniciar o combate à pobreza. Cumpriu a sua agenda, como diz Clóvis Rossi na Folha de S. Paulo. E Lula cumpriu a dele de forma admirável. Tirou (com Dilma) 40 milhões de pessoas da armadilha da pobreza, criando uma nova classe média baixa com acesso aos bens de consumo normais e com novas expectativas de vida. De algum modo, o fenómeno não é só brasileiro. No Chile, na Turquia e na China o desenvolvimento económico gerado pela globalização permitiu a ascensão desta nova “classe média” mais informada e mais exigente em relação aos respectivos governos, que é um importante factor de mudança.
Na mesma análise, Clóvis Rossi diz que falta agora cumprir a “quarta agenda”, aquela que a “geração Lula” reivindicou nos grandes protestos do Verão do ano passado e que se resume a melhores serviços públicos e menos corrupção. O que distingue as democracias europeias, sejam elas governadas à esquerda como à direita, é o facto de boa parte da justiça social, e da redistribuição da riqueza que ela exige, se fazer graças aos serviços públicos de qualidade igual para toda a gente. O Brasil ainda está a anos-luz desta realidade. Mas é ela que vai marcar a agenda política nos próximos tempos.
Dilma ainda tem do seu lado uma massa enorme de eleitores que beneficiaram com as políticas que Lula representa. Como disse o Presidente-operário, no dia em que recebeu a faixa presidencial das mãos de FHC, “cada brasileiro tem o direito a comer quatro refeições por dia”. Essa foi a sua agenda, que está praticamente concluída. Dilma precisa de outra, que não seja apenas a “Bolsa Família” ou a promessa de que vai dar mais atenção à educação e à saúde. Aécio pode beneficiar do descontentamento em relação ao PT e ao fracasso de outra das suas promessas eleitorais: devolver a ética à política. Foi o contrário. Mas o candidato do PSDB não é FHC. O anterior Presidente era um sociólogo eminente, que viveu parte da sua vida no exílio. Aécio identifica-se com uma classe média alta que vive muitíssimo bem (mesmo em comparação com a sua equivalente europeia), para a qual a vida é fácil e que ainda não percebeu totalmente que um país é desenvolvido se a classe média corresponder a uma esmagadora maioria da população. Promete mudança. Mas tem de fazer mais do que isso: provar que essa mudança serve a todos.
A campanha vai ser dura. Dilma acusará Aécio de querer privatizar a Petrobras. Aécio responder-lhe-á dizendo: “Imaginem a Embraer nas mãos do PT”. No fundo, seja qual for o resultado, o risco de o Brasil sair do seu trilho é relativamente pequeno. A democracia está consolidada, como provam os resultados da primeira volta, e a economia assenta em bases suficientemente sólidas para dar a volta à falta de crescimento.