Siza dividido entre Portugal e o Canadá
A notícia de que o autor do Pavilhão de Portugal está a negociar o depósito do seu arquivo no Centro Canadiano de Arquitectura, em Montreal, provocou inquietação nos meios da arquitectura nacional. Que capacidade terá o país para evitar esta perda é a questão que fica em aberto.
É este, em resumo, o sentido das reacções à notícia avançada on-line pelo PÚBLICO nesta quinta-feira de que o arquitecto do Museu de Serralves e do Pavilhão de Portugal está “em conversações” com o Centro Canadiano de Arquitectura (CCA - Centre Canadien d’Architecture) em Montreal, uma das mais importantes instituições do mundo dedicadas a esta disciplina, mas também com outras entidades, internacionais e nacionais, com vista ao depósito do seu arquivo.
Foi o próprio arquitecto que confirmou ao PÚBLICO, na quarta-feira, estar a considerar várias possibilidades para o seu acervo. Mas recusou nomear as outras instituições, para além do CCA, onde, de resto, em 2012 apresentou uma exposição de desenhos e esquissos sobre Machu Picchu, no Peru, e o seu projecto para a Quinta da Malagueira, em Évora.
“Não posso avançar nada, porque ainda não decidi nada, nem sei quando é que isso vai ser decidido”, disse Siza. O arquitecto também não quis adiantar que componentes do seu arquivo estão agora em equação, sabendo-se que, entre projectos, desenhos, esquissos e maquetas, correspondência, fotografias, documentos e outros testemunhos, ele ocupa hoje praticamente todo um andar (dividido por dois espaços) no edifício de ateliers que Siza projectou e divide com outros arquitectos junto à foz do rio Douro, no Porto.
O director do CCA, Mirko Zardini, confirmou ao PÚBLICO que a instituição canadiana está "a desenvolver conversações no sentido de encontrar a melhor solução para o arquivo". E que isso poderá passar por "encontrar parcerias com outras instituições no sentido de encontrar uma dupla componente para o acervo", solução que "está ainda em aberto", acrescentou.
Refira-se que a obra de Siza está já representada em três outros países estrangeiros: no Centro Pompidou, em Paris; no Museu de Arte Moderna (MoMA), de Nova Iorque; e na colecção do arquitecto britânico Niall Hobhouse, em Londres.
A informação de que parte considerável do acervo do mais mediático arquitecto português, de 81 anos, prémio Pritzker em 1992, poderá vir a sair do país já corre desde há algum tempo nos meios da arquitectura, provocando debate e alguma inquietação.
"Nunca há dinheiro"
Eduardo Souto de Moura, o outro Prémio Pritzker da arquitectura portuguesa, colaborador e amigo de Siza, começa por dizer ao PÚBLICO que este é um processo longo e que, no início, se insurgiu com a possibilidade da saída do arquivo: “Há um lado patriótico e romântico e perguntei mesmo ao Siza como é que tinha coragem de mandar as coisas para fora. Tentámos vários sítios em Portugal sem ele saber, depósitos, arquivos, mas depois de muitas tentativas e de muita conversa, reuniões e telefonemas, ainda não aconteceu nada de concreto.”
Souto de Moura explica que há a hipótese “de o arquivo ir para o Canadá, mas as coisas ficarem depositadas cá”, através de um protocolo com Serralves ou com a Gulbenkian, que estarão interessadas. “Mas nunca há dinheiro.”
“Isto não é só guardar, porque há muitos arquivos, do Athouguia, do Távora, do Teotónio Pereira, mas depois não acontece nada. Por muito que me custe, estas instituições [como o Centro Canadiano de Arquitectura] têm regras, têm um protocolo: primeiro tratam os documentos, limpam-nos, arquivam-nos e depois divulgam-nos através de exposições”, realça Souto de Moura.
É isso que falta em Portugal. E há a convicção de que Siza estará a procurar fora do país uma alternativa à falta de condições internas para a salvaguarda do seu acervo.
“Nunca ninguém se preocupou com os meus arquivos e com a minha arquitectura; agora é que começam a fazer-me perguntas”, realçou Siza. “Tenho sido contactado por bastante gente. Estou a conversar e a analisar várias hipóteses, que podem dar desde nada a uma qualquer fundação como destino”.
Um dos reveses mais recentes do arquitecto foi ter visto cair o anteprojecto que, no final da década passada, fizera para a construção da Casa da Arquitectura, em Matosinhos. “O projecto da Casa da Arquitectura acabou, foi anulado, nem sequer foi candidatado [a fundos comunitários]. É aquilo a que se pode chamar um arquivo morto”, lamentou Siza.
Uma situação que Guilherme Pinto, presidente da autarquia matosinhense, espera ainda poder reverter. “Tenho muita expectativa de que, na sequência das condições que estamos a criar, parte do arquivo do arquitecto Siza fique na sua terra natal”. Guilherme Pinto refere-se ao projecto de recuperação do velho edifício da Companhia Real Vinícola, um espaço de 4500 metros quadrados, que poderá vir a acolher esse acervo, enquanto não se reúnem as condições necessárias para fazer avançar a Casa da Arquitectura – que foi orçada em 43 milhões de euros.
O autarca lembra, de resto, que a Câmara de Matosinhos é já proprietária de um acervo substancial relativo à primeira fase da carreira de Siza, da qual faz parte a Casa de Chá da Boa Nova – que hoje mesmo é reinaugurada como restaurante, sob a direcção do chef Rui Paula, depois de um aturado restauro, que o próprio arquitecto orientou –, a piscina das marés e a marginal de Leça da Palmeira, entre outros projectos, que estão também representados no Centro de Documentação Álvaro Siza, instalado numa antiga casa da família do arquitecto.
Projecto congelado, mas não morto
Também Nuno Sampaio, que no início deste mês substituiu Carlos Castanheira na direcção da associação Casa da Arquitectura, afirma que o projecto de Siza para o novo edifício “está congelado, mas não abandonado”. “Comigo, inicia-se uma nova fase. A Casa da Arquitectura tem de procurar criar condições para acolher o arquivo de Siza”, realça Nuno Sampaio, mas sublinhando que esse é um trabalho que deve envolver todo o país e várias outras instituições.
Não foi possível obter, até ao momento, um comentário do secretário de Estado da Cultura sobre a questão do arquivo de Siza.
João Santa Rita, presidente da Ordem dos Arquitectos, admite que já tinha ouvido falar da possibilidade de saída do país do arquivo de Siza, e realça que o arquitecto “é livre de escolher onde quer ver guardado o seu acervo”. Mas acrescenta que "a Ordem dos Arquitectos tem pena de que a sua obra não fique preservada em Portugal”, já que se trata de um arquivo “fundamental para se conhecer a formação e identificação da arquitectura portuguesa contemporânea”.
Já Pedro Gadanho, curador de arquitectura contemporânea no MoMA de Nova Iorque, nota que “o problema da conservação do arquivo não é uma questão de veleidade pessoal, é uma questão de interesse nacional”.
E Diogo Seixas Lopes, “dramatizando um pouco”, mas sem querer recorrer a qualquer argumento de “integrismo territorial”, lamenta também a eventual saída dos testemunhos da obra de Siza. “Portugal tem a responsabilidade de instituir uma sede de investigação que permita conhecer o que foi a arquitectura nacional nos últimos anos”, diz este arquitecto, notando que Siza, “pelo seu cosmopolitismo e internacionalismo”, é um marco fundamental desse período.
Também André Tavares, que como Seixas Lopes frequentou, em dois momentos distintos, entre 2009 e 2014, o CCA em residências académicas, acha que “manter o arquivo em Portugal poderia ser útil para o país”. Mas também compreende, e considera “particularmente positivo”, que Siza queira escolher outro destino. É que, muitas vezes, o processo escapa ao autor e "os arquivos entram numa segunda vida que é diferente daquela em que a obra foi produzida”.
Outras hipóteses
Quando se levanta a questão de saber que instituições, em Portugal, poderiam, ou deveriam prestar-se, e preparar-se, para acolher o arquivo de Siza, como os de outros arquitectos relevantes do país, as referências vão cair mais ou menos coincidentemente nos mesmos sítios: a Casa da Arquitectura em Matosinhos e a Fundação Marques da Silva, no Porto (que recentemente recebeu os arquivos de Alcino Soutinho e de José Carlos Loureiro, que vieram acrescentar-se ao de Fernando Távora). Mas também as fundações de Serralves e Gulbenkian. O presidente da fundação portuense, Luís Braga da Cruz, revelou ao PÚBLICO ter já comunicado a Siza que “Serralves está disponível para acolher a parte do arquivo que ele entender, e a tratá-lo devidamente”. “Mesmo se a situação económica da fundação, e do país, não é a mais propícia, a gente há-de encontrar solução para isso”, acrescentou.
Outra instituição que poderia ser mais envolvida na salvaguarda destes arquivos é o Forte de Sacavém, actual sede do Sistema de Informação para o Património Arquitectónico (SIPA), onde está documentada toda a intervenção que a Direcção-Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais efectuou ao longo do século XX.
João Vieira, director do SIPA, lembra que aí se encontram os espólios e acervos de uma vintena de arquitectos, de Frederico George a Faria da Costa, de Cottinelli Telmo a Chorão Ramalho, mas também de paisagistas como Ribeiro Telles e de artistas como Daciano da Costa e Eduardo Nery. E diz que o Forte de Sacavém “é um lugar óptimo” para acolher novos arquivos, embora admita que outros possam estar mais vocacionados para o de Siza, dando o exemplo da Fundação Marques da Silva.
Já Souto de Moura acha que, “enquanto não houver uma Casa da Arquitectura com meia dúzia de arquivistas, uma instituição segura e firme”, não vê uma solução e percebe a opção de Siza, assegurando que alguém trate da sua memória. “Portugal, praticamente, não tem nada de importante. A não ser futebol e atletismo. Os outros dizem que a nossa arquitectura é importante”, acrescenta o Pritzker de 2011. com Isabel Salema e Jorge Figueira