O que fazer a este poema contínuo?
A doação do arquivo de Siza ao CCA, em parte, ou em desdobramento, ampliará a projecção internacional do arquitecto português. Mas faz impressão que as instituições nacionais não tenham conseguido criar condições para que o espólio de uma das poucas figuras da cultura portuguesa com verdadeiro impacto internacional pudesse ficar em casa.
A obra de Siza não é infalível – vamos supor… - mas não podemos falar exactamente de algumas obras-primas, ou de descontinuidades, ou de becos sem saída. É um “poema contínuo”. Dos anos 1950 até agora, Siza pratica a “pesquisa paciente” que Le Corbusier prescrevia. Nem sempre mantendo a calma.
No início dos anos 1970, Rafael Moneo dizia, para enquadrar, que Siza estava “fora de moda”. Entretanto Siza inventou a sua própria moda. É uma categoria particular na história da arquitectura.
O seu arquivo é por isso um assunto internacional. Envolve projectos em várias partes do mundo (Espanha, Holanda, Itália, Brasil, Coreia do Sul) e reflecte – desenha – a história de Portugal: com projectos intimistas e contrários, antes do 25 de Abril (Casa de Chá em Leça, Casa Alves Costa); o 25 de Abril (SAAL, Malagueira); os anos da universidade (Setúbal, Aveiro, Porto); o caminho da reabilitação (Chiado); os anos da cultura (Pavilhão de Portugal, Serralves); o turismo (Alentejo, Vidago).
A obra de Siza é responsável por uma parte do turismo cultural que se faz no Porto.
Há uma pequena “indústria” à volta deste arquitecto; o mínimo que inspira é respeito; a admiração profunda também costuma constar.
Há já algum tempo que se discute o destino do arquivo de Siza, em grupo pequeno. Pelo próprio, naturalmente, e um círculo de amigos e colaboradores.
Gorada a ideia inicial da Casa da Arquitectura, em Matosinhos – que era construir um edifício para esse efeito –, a hipótese do Centro Canadiano de Arquitectura (Centre Canadien d’Architecture, CCA), em Montreal, tem vindo a ganhar força. O CCA é uma instituição prestigiada que conta com arquivos de figuras maiores da arquitectura contemporânea como Aldo Rossi, James Stirling, Peter Eisenman.
A questão é que não se trata somente de arquivar – o que é já de uma enorme complexidade – mas de activar programas que permitam o reconhecimento e o estudo da obra arquivada. Arquivar é nesse sentido disponibilizar; não fechar mas abrir.
Não houve entretanto uma instituição portuguesa que se interessasse devidamente por este tema. Já sabemos que a arquitectura tem um estatuto especial; não é bem arte; não é bem ciência, etc. Acontece que a obra de Siza superou essas dúvidas, e impôs-se. Lá fora, cá dentro, por aí fora.
Acompanhando os edifícios que se podem visitar, a constituição de um arquivo no nosso território seria decisiva em aspectos que tem vindo a ser descritos como essenciais para a nossa sobrevivência como país: turismo, ciência, cultura.
Mirko Zardini, director do CCA, diz-nos que “está em interessado em ajudar a encontrar uma boa solução”, e está “aberto” a várias hipóteses negociais. O CCA, desde 2006, só aceita doações, e tem reunido um crescente número de espólios.
Zardini, que é italiano, conhece bem a obra de Siza, e a realidade portuguesa. Sabe que se trata de uma questão sensível, e propõe a criação de uma estratégia com uma “componente dupla”, cruzando Portugal e o CCA.
O Museu de Serralves, a Gulbenkian, a Câmara do Porto, a Fundação Marques da Silva, o Forte de Sacavém são alguns eventuais parceiros, digo eu. Mas estas instituições deverão assumir o duplo papel de arquivar e programar.
A doação do arquivo de Siza ao CCA, em parte, ou em desdobramento com Portugal, ampliará a projecção internacional do arquitecto português. Mas faz impressão que as instituições portuguesas não tenham conseguido criar condições para que o espólio do maior arquitecto português de sempre, e uma das poucas figuras da cultura portuguesa com verdadeiro impacto internacional, pudesse ficar em casa.
De qualquer modo, não quero fazer um “choradinho”, o chão já está demasiado escorregadio.
Talvez ainda haja tempo, se houver vontade, para uma negociação que permita criar um “compromisso duplo”, como nos disse Zardini, em que Portugal possa assumir uma quota-parte da responsabilidade da gestão deste arquivo.
O legado da obra de Siza para a cultura portuguesa é, já se percebe hoje, maior do que poderemos imaginar.
Da parte do CCA pareceu-me haver disponibilidade para encontrar soluções que não escudem a desistência das instituições portuguesas. Falta a estratégia, como é habitual, e um compromisso. Por se tratar de um “poema contínuo”, custa que o arquivo de Siza se fragmente. Mas criemos as melhores condições para continuar a ser lido.