A banalidade como catarse

Uma das sequências mais famosas do cinema de Pedro Almodóvar é aquela em que, no filme Mulheres à Beira de Um Ataque de Nervos, Carmen Maura atravessa uma larga avenida madrilena no lusco-fusco de um dia que nasce, envolta na sua própria solidão e perdida num paradigma moderno de floresta urbana.

A Invenção do Amor, o romance com que José Ovejero conquistou o Prémio Alfaguara 2013, também começa quando interceptamos Samuel numa encruzilhada: fim de festa num desses terraços magníficos de uma Madrid desenhada com gosto burguês a régua e esquadro, uma festa onde juntou alguns amigos quarentões como ele, mas com menos vícios porque mais acompanhados. “Um homem que vive sozinho acaba por se transformar numa versão esbatida de si próprio: vão-se instalando pequenas manias na sua vida quotidiana, como jantar de roupão, ou deixar os pratos sujos empilhados no lava-loiça, lavando-os apenas à medida que precisa deles, ver televisão até às tantas, passar o fim-de-semana de pijama, perder tempo com jogos de computador.”

Estamos num desses momentos em que a noite se desfaz: “Daqui a pouco já não serei capaz de me lembrar de qual foi o último a ir-se embora nem de que palavras trocámos. O meu cérebro é de algodão. Ia dizer de palha-de-aço, mas seria uma imagem demasiado áspera: e eu, sim, estou bem.”

Durante o dia, Samuel arrasta-se a trabalhar, sem entusiasmo, numa construtora civil que está pronta a ser vendida a milionários vindos do Leste europeu. Uma chamada telefónica vai fazê-lo reinventar a vida que já tinha desistido de ter. Aquela onde há uma certa normalidade na procura de esperança, aquela onde a procura do tesouro que se esconde para lá do arco iris não é uma quimera. Para lá chegar vai ser preciso atravessar uma floresta de enganos, uma teia de enredos, um último túnel antes de chegar à gare. Uma purga.

É a pièce de résistance do romance que nos vai devolver imensos fantasmas. Mais ou menos próprios, depende do leitor. Mas que há inquietações que vão sendo penduradas como roupa a secar, isso é bem verdade: “E o que eu não sei é se esse dia em que deixamos de nos preocupar com os barulhos das nossas tripas, de dissimular as nossas funções fisiológicas, se esse dia em que não te importas que o teu parceiro te ouça a cagar, é o dia em que o amor acaba ou o dia em que o amor começa.”

Todo o romance de José Ovejero está escrito no pressuposto corajoso de que qualquer pessoa, mesmo a mais conformada, tem apesar de tudo o direito a reinventar uma nova vida, mesmo que para isso seja necessário vestir a pele do protagonista de uma ficção que não é a sua, e da qual se apropria em desespero de causa. É por isso que Samuel se cola à vida de outro Samuel que acaba de ficar sem namorada num acidente. Os equívocos e os ajustes que se seguem a essa decisão preenchem a parte em que o romance se aproxima das regras do suspense. Samuel tudo resolve como se usasse uma fórmula científica e escapa entre os pingos da chuva à descoberta da mentira pela irmã da morta, por quem entretanto se apaixona. Vai levar tempo, mas acabará por afastar os escolhos da ficção para se dedicar por fim à verdade da invenção do amor em que julga não acreditar: “Sempre evitei a palavra amor. Um substantivo desvalorizado, uma moeda tão usada que perdeu o relevo, de modo que é possível acariciá-la entre os dedos sem discernir imagem alguma: uma moeda que não me atreveria a oferecer com receio de ser considerado vigarista.”

Nada do que está escrito em A Invenção do Amor é novidade em si. Já lemos muitos romances de apropriação de identidade, já nos empanturrámos em doses pantagruélicas com estes jogos em que comparamos alguém com a sua alma gémea e em que nos empenhamos em esbater a diferença entre a fotocópia e o original. Já conhecemos outros seres bem mais empedernidos do que este Samuel. E no entanto A Invenção do Amor apanha-nos desprevenidos pela sinceridade das confissões banais que agitam a nossa indiferença. Parece haver uma sincronia entre o momento em que José Ovejero decidiu escrever este romance e a hora em que Samuel resolve assumir uma nova identidade. A partir daí, nada os detém, num processo quase automático e paralelo. Depois fica este objecto em que as linhas se devoram e as entrelinhas ficam a dar que pensar.

 

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