Jorge Roque escreve desde sempre, obstinadamente, como se isso fosse, e é, o principio e a ética da vida - como se a escrita abarcasse tudo, arrebatasse consigo até o corpo presente nos interstícios desta escrita, corpo que um dia não vai renascer, corpo que constitui matéria metafórica por excelência do autor. Recluso, algo marginal, tem vindo a publicar em circuitos estranhos aos das redes mais comerciais: edições de autor (recentemente, O Martelo), revistas (Telhados de Vidro), tendo os dois últimos livros, Broto Sofro e agora Canção da Vida, saído na Averno. Textos curtos num género sem género, fragmentos em prosa.
A capa destes dois últimos livros traduz justamente uma transformação do ethos poético do autor. No primeiro, uma ilustração de Guilherme Faria (capa e imagens interiores) na senda de Goya, Bacon ou até do Munch de O Grito, o artista plástico lê à sua maneira o poeta: o corpo em desespero, contorcido, a carne sexualizada, macerada, a voz que se desagrega e sofre, uma boca enorme, aberta, que evoca um grito sem fim. No segundo, uma fotografia assinada pelo autor: a chávena de café, o lápis, um pedacinho de papel, talvez a conta do restaurante.
O livro transladou-se: a desadequação exorbitante foi decantada, desacelerou-se, e o texto absorve-a de outra maneira: “o martelo acertou onde não devia (...) a vida é sobretudo desequilíbrio em movimento, circo precipitado de forças, embate, ricochete, crise, acomodação. Pouco mais do que teimosia, seguindo o raciocínio, a ideia de um esforço concentrado, dirigido. Um martelo e um prego, por exemplo, e uma recta certeira a uni-los. Não obstante, resta-nos continuar a teimar, é que aqui a lógica se complica e na razão se encrava a perfeita teoria. Mas, regressando ao martelo, não acertou no prego, não acertou no dedo, não acertou no estuque liso da parede. Onde acertou afinal? O certo é que ficou a doer. Essa certeza basta à poesia”. Citamos O Martelo, breve manifesto pessoal da poesia, se bem que a arte poética de Jorge Roque emerja implícita e explicitamente em outros livros. Aqui, ela é acompanhada por uma fotografia do próprio autor, exaurido, gasto.
Canção da Vida parece ser todo um trabalho poético de re-socialização (disfórica) de Broto Sofro. Pequeno livro, quatro porções: um corpo que morre; vida partida; duas mesas ao lado; canção da vida. Os textos são curtos, fragmentos que isolam e sublinham sentimentos ou emoções possíveis em que o leitor se lê e lê em simultâneo a forma que os captura. Há uma muito maior maturidade estilística na escrita do autor. Os mesmos recursos, mais apurados. Um dos traços mais interessantes é notar a passagem desta voz do lado primordialmente do sujeito para o lado do objecto e a retracção do primeiro. Será um desalento, uma abstenção, isto é, o leitor vê os olhos do sujeito que enuncia a verem o que (se) dá a ver exultando a participação desse mesmo objecto na acção assinalada. Um exemplo, entre muitos outros possíveis: “a faca desviou-se do seu curso, nada a fará voltar atrás agora. O gume encontrou o dedo”. A irreparabilidade do que acontece, o não se poder reverter o tempo, a morte, sempre a morte, norteiam o ethos deste livro pequeno e pungente, muito belo e mansamente infeliz. Um tema glosado repetidamente é o da agilidade técnica da escrita, da sua própria escrita - destreza na rima, ouvido para o ritmo, instinto harmónico, desarticulação da sintaxe, da conexão previsível das palavras na frase. Mas, “e a morte doutor, e a morte?”
Um tema reiterado, que vem de trás, mas agora é exaltado, e é aliás logo mote de abertura: o da falha, da fenda, do atrito mesmo ligeiro que desorientou o curso da vida, que chamou a atenção e desdobrou o sujeito. E, ao acontecer, afastou-o de si. Como uma fístula que sobressai da torrente, da lisura da pele, do trajecto que poderia até ser mais contínuo e macio, menos convulso (os primeiros textos de Jorge Roque são mais tumultuosos): “um movimento mal calculado, um atrito ou um deslize”. Como uma ferida - mais cônscia -, uma ferida que imobiliza e modela o rumo e o modo de percepção do sujeito poético de si e do mundo. Em Canção da Vida irrompe um “tu” com frequência, talvez o mesmo desdobrado, às vezes com sarcasmo, algum cepticismo; um “tu” que é talvez um outro semelhante, deambulando, e um “tu” talvez amoroso ainda, mais como lastro do que como presença, talvez um interlocutor, resíduo que ainda vaga e nostalgicamente resiste. Essa descontinuidade no tempo desfaz a unidade do sujeito que assim, a si próprio, se interpela cindido, estilhaçado desde o atrito. Um eu desunido que escreve desse lugar pós, partido, sem conserto o instrumento, se bem que o canto não cesse de querer fazer-se reverberar, não para a eternidade mas “por um desejo de viver mais agora”.
O conjunto de textos em que o sujeito ronda tão solitariamente espaços públicos mais ou menos anónimos - restaurantes entre fins de refeição, copos de vinho e cigarros -, cruzando fios de conversa desenraizada, ou movimentos, porções de movimentos que imagina estarem ou poderem estar a ser cometidos, constitui um dos exemplos mais extremos, mais negros e comoventes de solidão, da solidão entranhada irreparavelmente num corpo que atravessa a vida já sem verdades nem conclusões ou ilações a retirar.
Mesmo assim, há uma ou outra pausa que imprevisivelmente sustenta a parada, que mantém viva a cancão: “o rapaz tocava saxofone à saída do túnel que dava para a praia. O som pairava, largo e vibrátil, iluminava a praia, extinguia-se no ar. Ao fundo do areal, uma rapariga banhava-se nas águas do fim da tarde. Mergulhava, voltava à superfície, deslizava igualada às águas, era como se fizesse parte do mar. A mim, soou-me à canção da vida. Senti-me feliz que não se tivesse calado.” Um instante, uma bela imagem.