Há uma série em Nikias Skapinakis. Presente e Passado, 2012-1950 que se destaca: uma extensa sequência de pinturas, todas sensivelmente do mesmo formato, que retratam "quartos imaginários" - assim lhes chama o artista - de pintores e escritores. Todos eles, à maneira do quarto amarelo de Van Gogh, ostentam quase sempre uma cama, talvez uma janela, e um pormenor que nos recorda a obra do seu suposto proprietário. O quarto de Marcel Duchamp, por exemplo, tem uma banheira e um urinol que evoca a célebre Fonte, de 1917. Contudo, o que ressalta nesta série não são propriamente estes mementos, estas formas de dizer que tal quarto imaginado só poderia ser de Duchamp, de Magritte, de Cesariny ou de Fernando Pessoa. O que se se impõe é a ausência, a ausência de um habitante, de um artista, de um corpo. E paradoxalmente, quando vemos uma imagem do nome, ela não passa disso mesmo, de imagem: Vieira da Silva e Arpad, por exemplo, abraçam-se no quarto, numa citação óbvia de um famoso retrato do casal.
A melancolia, ensinou-nos Julia Kristeva, resulta de um vazio impossível de preencher, e encontra-se na obra de Mantegna e de Goya - ou, no caso presente, de Nikias Skapinakis, alvo desde a semana passada, e até 24 de Junho, de uma antológica no Museu Colecção Berardo, em Lisboa. Este vazio, esta ausência que o artista uma e outra vez pretende ocultar com a representação de caixas, pacotes, embrulhos, volumes de qualquer coisa, é uma das grandes constantes da sua obra, que só pontualmente se deixa tocar pelo apelo do espaço sem fronteiras: na exposição que agora inaugurou, esse trabalho do espaço apenas confinado pelos limites da folha de papel é residual, e não constitui nunca uma regra a que o artista voluntariamente se submeta para trabalhar.
De origem grega, nascido em Lisboa em 1931, Nikias Skapinakis foi um dos poucos artistas da sua geração que nunca emigrou. Chegou a frequentar o curso de arquitectura nas Belas-Artes, mas rapidamente saiu da escola (a sua biografia menciona mesmo uma expulsão por razões políticas), passando então a integrar ateliers livres onde se convivia, se falava de arte e se aprendia a pintar e desenhar. Nikias, nome com que ficou conhecido, menciona aulas de Domingos Rebelo e de Emmerico Nunes, dois colegas de geração de Amadeo de Souza-Cardoso. Mais tarde, os amigos de ateliers independentes tinham os nomes de Sá Nogueira, Carlos Calvet, e mesmo Jorge Vieira. Como sucedeu com outros seus contemporâneos, foi por aqui que teve acesso à arte internacional, e que se deixou fascinar por Chagall, o pintor do misticismo e da poesia das tradições judaicas do Norte da Europa.
Ler os clássicosNikias assume a concepção de toda a presente exposição, que se desenrola nos dois grandes corredores e nas salas do piso 1 do museu. É um espaço imenso, preenchido metodicamente por uma montagem que sai do percurso cronológico tradicional, e que se concentra na definição de sete núcleos, entre os quais o dos "quartos imaginários". As obras mais antigas ficam nas salas onde desembocam os dois corredores. São estas que lhe trouxeram notoriedade e que levaram a que, por exemplo, fosse convidado a integrar o conjunto de artistas que pintou quadros para decorar A Brasileira, no Chiado. Escolheu um retrato de grupo, evocação da obra de Almada Negreiros que precedeu a sua no café lisboeta: quatro críticos de arte sentados à mesa, realizados segundo a técnica de manchas de cor lisa, sem modulação de sombras, que privilegiava na altura.
Muitos destes retratos, isolados ou em grupo, estão na exposição. Apesar da técnica, bem em consonância com a arte internacional da época - pensamos no britânico Patrick Caulfield, por exemplo -, há nesta pintura um apelo constante à cultura clássica ocidental que leva o artista a convocar pontualmente personagens da mitologia grega. Zeus e todas as suas amantes - mas Europa já não é uma rapariguinha assustada pelo touro, antes uma "miss" entediada com a atenção que recebe. Neste sentido, a obra de Nikias insere-se voluntariamente numa linhagem prestigiada que a afasta dos movimentos internacionais, sempre preocupados com a fuga ao classicismo. Ainda hoje, nos textos que pontuam a visita à exposição, todos da sua autoria, o artista refere a Casa dos Mistérios de Pompeia e o italiano Carpaccio como as duas grandes referências de uma obra que foi também despoletada pela pobreza cultural da Lisboa dos anos 50 e 60. Afirma que a pintura é sempre procura e descoberta interior, mesmo quando não o parece. E é assim que vemos a sua obra desdobrar-se por um Ponto Metafísico, umas Paisagens do Vale dos Reis, uns Caminhos da Liberdade, entre outros núcleos, mas sobretudo por uma atenção à actualidade que nunca deixou de se fazer notar: uma das séries tem por nome TAG, e a seu propósito referiu o historiador António Rodrigues marcarem a atenção à pintura que sai do espaço institucional para se concretizar na rua. Contudo, mesmo aqui a melancolia é norma: a mesma que leva o artista a desenhar - é uma exposição com muito desenho - ininterruptamente, chegando mesmo a utilizar os suportes mais desprestigiados de todos, o papel kraft e o papel higiénico, em rolo.
Enfim, a obra de Nikias confirma o que os historiadores intuem: foi uma geração de ouro no contexto da arte portuguesa dos últimos cem anos. Sua foi a geração de Lourdes Castro, de António Areal, e mesmo de Paula Rego, embora esta seja ligeiramente mais nova. Sua foi a geração que, contra tudo o que era provável e permitido, conseguiu primeiro entrar em consonância com a arte internacional. E mesmo que o vazio seja aquilo que Nikias parece tentar sempre e sempre encerrar, esta é uma obra notável, no tempo em que se fez e faz.