Era uma vez a Revolução

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O povo e as armas do MFA, o povo que “tomava o destino nas suas mãos”, o povo em luta: o 25 de Abril e o processo revolucioná-rio que se lhe seguiu foram abundante-mente documenta-dos

Sempre se comemora o 25 de Abril, e tanto mais em datas redondas, como agora por ocasião dos 40 anos. E todavia há também uma evidente rasura do que foi, em toda a sua complexidade, o dito Processo Revolucionário Em Curso (PREC), nos 18 meses entre o 25 de Abril de 1974 e o 25 de Novembro de 1975.

Preservar a memória do 25 de Abril e desse processo revolucionário exaltante, conturbado, contraditório e também tantas vezes inquietante, é matéria do património colectivo que há que interrogar, não só no tocante a documentos factuais mas sobretudo em termos ideológicos e de representações. E nessa vertente é crucial (re)ver o cinema da Revolução, de resto com sequelas que se prolongaram em anos subsequentes, como agora será possível na Cinemateca, num programa de extensão inédita.

De facto a Cinemateca já dedicou ao 25 de Abril outros ciclos, como em 1984 ou 1999. Há três anos houve também um assinalável ciclo no Panorama — Mostra do Documentário Português. Mas nada houve de tão exaustivo como este 25 de Abril, Sempre, que decorrerá ao longo de Abril e Maio, com uma Parte I — O Movimento das Coisas já no próximo mês, dedicada propriamente à produção do PREC, e a alguns dos seus antecedentes. O ciclo recua ao movimento cineclubista dos anos 1960/62, retomando depois a actividade desenvolvida pela cooperativa Centro Português de Cinema (CPC) no início dos anos 1970 (“saltando por cima” do “novo cinema” da década de 1960, mais visto e conhecido — ainda agora houve retrospectivas paralelas de Paulo Rocha e Fernando Lopes), para chegar, finalmente, ao “cinema de Abril”, cujos derradeiros ecos também inclui, com filmes terminados já nos anos 1980. Em Maio, a Parte II incidirá sobre a memória da revolução, abordada em filmes bem mais recentes.

Diga-se desde já e com sublinhado: a programação é preciosa. Quem conhece ou tem presentes obras como Auto de Floripes (1960), feito colectivamente no âmbito do Cineclube do Porto, e primeiro filme em que participou António Reis? Ou Entremez Famoso Sobre A Pesca do Rio Minho (1973), de Luís Galvão Teles, Manuel Carlos da Silva e Elso Roque? Ou o à época muito polémico Júlio de Matos Hospital…? (1974), José Carlos Marques? Ou Para Todo o Serviço (1975/76), de Margarida Gil? Ou Máscaras (1976), de Noémia Delgado — e muitos foram os que, vendo os extractos desse filme que Miguel Gomes incluiu em Redemption se perguntaram de onde vinham tais imagens... Ou esse singularíssimo Provas Para Um Retrato de Corpo Inteiro (1978), de José Alves Pereira, José Bogalheiro e Pedro Massano Amorim, de resto com a participação de marcantes agrupamentos musicais desses anos, como a Banda do Casaco ou o GAC — Vozes na Luta? Ou essa joia ignorada do cinema português que é O Movimento das Coisas (1985), de Manuela Serra, em termos de data de conclusão o filme mais tardio incluído nesta Parte I, ao qual aliás dá o título genérico?

Além destes, há outros filmes “inesperados”, considerados os seus autores — como Perdido Por Cem… (1972), primeiro e tocante filme de António-Pedro Vasconcelos, marcado por Godard e pela Nouvelle Vague como em nenhum outro caso no cinema português, que será uma total surpresa para quem só conhece o percurso recente, e nos antípodas, daquele realizador — ou os “filmes militantes” de António de Macedo, já exibidos na retrospectiva que a Cinemateca lhe dedicou há dois anos, mas que neste contexto, e com outros filmes da cooperativa a que Macedo pertencia, a Cinequanon, são bem mais esclarecedores de como “o espírito do tempo” marcou tantos e tão diversos cineastas.

Esta lista é eloquente, mas, até pela extensão inédita da programação, mais do que nunca importam as interrogações. Por isso é desde já necessário abordar este ciclo, que começa na próxima terça-feira, 1 de Abril, com Brandos Costumes (1975), de Seixas Santos, seguido de Deus, Pátria, Autoridade (1975), de Rui Simões, e concluindo-se com Gestos e Fragmentos (1982), também de Seixas Santos.

Sendo radical, diria que em termos globais a produção do PREC foi politicamente ineficaz e cinematograficamente nula ou quase. Entendamo-nos: entre 1974 e 1982, houve alguns filmes relevantes e notáveis, como Adeus, Até Ao Meu Regresso (1974), de António-Pedro Vasconcelos, o tão insólito e ideologicamente muito questionável Que Farei Eu Com Esta Espada? (1975), de João César Monteiro, o extraordinário Torrebela (1977), de Thomas Harlan (este feito à margem do “cinema português”, e que até ignorávamos, a ocupação daquela herdade sendo-nos sim conhecida por filmes de Galvão Teles e Vítor Silva que passam no ciclo), até Bom Povo Português (1980), de Rui Simões e Gestos e Fragmentos. O que quero dizer é que em termos genéricos o cinema da Revolução foi imediatista, ideologicamente enquadrado (num saturante uso da voz off) e pré-determinado, quantas vezes “demonstrativo” dos discursos políticos prévios, e paternalista para com essa entidade por certo real mas também mítica e politicamente condicionante de modo axial, “o povo”.

Afinal o que é o povo? Eis uma questão crucial mas quase sempre ausente, ou, como disse António Reis: “Para mim o povo rural (transmontano, beirão, alentejano…) não é o queridinho povo rural [e esta declaração também enuncia a ética e a poética dos filmes de Reis e Margarida Cordeiro]. Como o operariado da Lisnave, das minas de Portelo ou de Tuela não é o queridinho operariado, ou o operarismo, mas sim o querido operariado da Lisnave, de Portelo e de Tuela.”

O povo, o povo e as armas do MFA, o povo que “tomava o destino nas suas mãos”, o povo em luta apresentado sem qualquer mediação propriamente cinematográfica. Por certo que é relevante a existência de tantos documentos sobre os processos sociais da altura — e regozijemo-nos, por exemplo, que o ciclo permita enfim voltar a apresentar a súmula que é Contra as Multinacionais da Cinequipa (1977), incluindo sequências de outros filmes dessa activissíma cooperativa. Mas também o povo no concreto e a radicalidade da acção política; há uma cena em A Festa (1975), de António Campos, que até pode passar despercebida e que acho das mais relevantes do cinema do PREC, com a total indiferença das gentes de Vieira de Leiria perante um grupo de militantes do MRPP, que grita palavras de ordem e intenta “chamar o povo”, em pleno Verão Quente.

Assim sendo, o que de mais relevante se fez então no cinema decorrente do 25 de Abril foi um projecto de registo do povo e das suas culturas, mas no sentido das gentes, das tradições e dos imaginários, o Museu da Imagem e do Som, surgido no âmbito do CPC, e em que se inseriram filmes como Trás-Os-Montes, de António Reis/Margarida Cordeiro, Nós Por Cá Todos Bem, de Fernando Lopes, o citado Máscaras, ou Madanela, de Manuel Costa e Silva, além de outros que podem considerar-se de “cinema etnográfico”, como os de Campos ou Terra de Abril, de Anna Glogowski e Phillipe Constantini, e outros ainda. Isso e dois epitáfios. Afinal, politicamente, os filmes mais importantes foram dois epílogos, Bom Povo Português (1980), de Rui Simões, e Gestos e Fragmentos, ambos se concluindo aliás com a mais carismática figura da Revolução, Otelo Saraiva de Carvalho — vendo pela televisão a tomada de posse como Presidente da Republica de quem duplamente o tinha batido, a 25 de Novembro e nas eleições, Ramalho Eanes (cena absolutamente espantosa), no filme de Simões, ou recuperando a sua tomada de posse como comandante do COPCON, lembrando aos generais que não tinham sido eles, mas sim os jovens oficiais, a fazer o 25 de Abril, no de Seixas.

Estranho “cinema da revolução” este, que afinal teve os seus momentos maiores em dois epitáfios.

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