Cannes 2014: memórias de uma edição sem memória do seu corpo
O festival em análise no último dia da competição oficial pela Palma de Ouro.
O que não nos larga sao as palavras de Depardieu, figura possante e delicada, na conferência de imprensa do filme de Ferrara, quando evocou Antonioni, Marguerite Duras, Marco Ferreri, Maurice Pialat, os tempos de Cannes em que havia direito à polémica e à provocação, aos assobios de protesto e, colado a isso, se calhar uma Palma de Ouro. Depardieu respondia a uma questão sobre o porquê da não inclusão de Welcome to New York em competição ou numa sessão mais oficial, já que o filme foi exibido numa barraca de praia, momento de risível indignidade mas de glorioso kitsch underground. Terão sido pedidos cortes a Ferrara (as cenas de orgia com Mr. Devereaux/Dominique Strauss-Khan/Depardieu), e o realizador não esteve para isso. Por isso o actor se referia, quer-nos parecer, ao risco que tem de ser um festival – o risco de agredir, por exemplo, é um ónus de quem programa (o actor mencionou explicitamente e com ironia o ex-campeão de judo Thierry Fremaux, delegado-geral do festival, como o rosto de um estado de coisas).
Não nos largam essas palavras quando fixamos a memória da competição de Cannes 2014 ou olhamos para o cartaz do festival, o cepticismo nos olhos de Marcello Mastroianni: ausência de risco, a rotina do política e artisticamente correcto e (em alguns casos) já a decomposição, nos suspeitos e nos rituais do costume, Mike Leigh, Ken Loach, Egoyan, Nuri Bilge Ceylan, David Cronenberg (Map to the Stars parece ter sido realizado por um amnésico), os irmãos Dardenne, o realizador que parecia ter nascido ontem, o Michel Hazanavicius de O Artista, e que parece ir acabar hoje (The Search foi recebido quase unanimemente como um desastre). Ou Olivier Assayas, que se sempre foi cineasta de gestos de uma elegância tímida e fugidia, agora, com Sils Maria (penúltimo filme em concurso), está preso nas deceptivas montanhas do kitsch.
Os gestos são agora pesados, denunciados, como este de chamar Brady Corbet ou Kristen Stewart para irem ao encontro de um filme de autor e de Juliette Binoche nos Alpes suíços. Juliette interpreta uma actriz que já dobrou os 40 e que vai regressar à peça de teatro que a descobriu na juventude. Um déjà vu do jogo de espelhos a arrastar-se pelo camp? Sim, é o filme. Não falta, já agora, a Leviathan, de Andrey Zvyagintsev – o último filme da competição - a capacidade de questionar a sociedade, nesse caso a russa, mexendo com veemência em coisas viscerais, o domínio e a submissão, a ocupação da liberdade individual e a submissão, cada um de nós e o Estado. Há aquela sequência em que um grupo pratica a sua pontaria sobre retratos de Brejnev, Gorbachov, Ieltsin, faltando “os mais recentes” porque é preciso “recuo histórico”. Mas não há capacidade de grandeza (o que falha também no novo de Ceylan, Winter Sleep), apesar do título do filme e de alguns planos “tarkovskianos” denunciarem essa intenção. Não é mesmo a “última obra-prima russa”
Com o que é que ficamos, então, da competição de Cannes 2014?
Com uma experiência puríssima de cinema, Le Meraviglie, de Alice Rohrwacher, um daqueles filmes que tacteiam junto do âmago do cinema: dar vida aos mortos, permanecer sempre em contacto com a experiência do invisível. E estar em contacto com a memória que o construiu, a do cinema italiano.
Com a confirmação de um momento de superação - coisa que faltou a quase toda a competição -, a de Xavier Dolan, que abandona definitivamente a adolescência, deixando de utilizar o cinema como afirmação narcísica da sua autobiografia para entregar o cinema ao filme e às personagens. Como todo o seu culto de “menino prodígio” foi construído em Cannes, seria um gesto revisionista cheio de aplomb se a sua afirmação como cineasta, e já não it boy, se fizesse neste palco. É preciso agora que o júri (presidido por Jane Campion, anunciando domingo o seu palmarés) se supere.