Xavier Dolan, o menino das mamãs, com a imprensa a seus pés

Um melodrama, Mommy, varreu a competição do Festival de Cannes, reconciliando-nos com esta edição.

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O realizador durante a conferência de imprensa REUTERS/Regis Duvignau
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O realizador Xavier Dolan (segundo à esquerda) e o actores Anne Dorval, Antoine-Olivier Pilon e Suzanne Clement REUTERS/Benoit Tessier

A resposta vai ficar para depois. Para já, estão aí as emoções com que um melodrama, Mommy, varreu a competição desta 67.ª edição (flashback para 1996, Segredos e Mentiras, de Mike Leigh, é desse nível a coisa…), reconciliando-nos com uma edição que só a espaços estabeleceu mais do que relação de rotina com o espectador.

Para dizer a verdade, qualquer dilema que Dolan possa colocar agora cai por terra perante a admiração que o seu tour de force está a suscitar: num subúrbio quebequense, aquele em que Dolan cresceu, a história de uma mãe, do filho doente e violento que ela tenta manter ao seu cuidado, em vez de o internar numa instituição, e de uma vizinha, ex-professora que deixou de falar depois de um trauma, que se junta a esse par – trio formado ao sabor das manobras de compensação emocional de cada um, e que vive efémera história de folie à trois, contra tudo e todos, contra até o formato quadrado do ecrã que os aprisiona, mesmo que elas, com um toque de mãos, em momentos condenados também à efemeridade, possam empurrar para os lados os limites dessa prisão, o ecrã, deixando entrar mundo e podendo ambicionar um lugar no mundo (epifania ao som de Wonderwall, dos Oasis, por exemplo).

Foi decisivo para a afirmação pública da maturidade do cineasta Dolan um filme como Tom à la ferme (2013), o anterior – já comprado para Portugal, tal como Mommy, mas ainda não estreado. Pela forma como, ao suspender a aceleração folclórica, que parecia imparável e em rota para o acidente, o cinema do realizador do Quebeque deixava os espectadores, tal como as personagens, pendurados no fio do desejo.

Foi esse passo, talvez, que permitiu que Dolan regressasse com Mommy a um motivo autobiográfico, a relação com a sua mãe, que estava na origem da primeira longa, J’ai tué ma mère (2009), e o refundasse desta forma: gloriosamente. Encontrando um centro de gravidade para o histrionismo do seu cinema e para a voracidade pagã do vernáculo quebequense junto de actrizes habituais, como Anne Dorval (a mãe) ou Suzanne Clément (a amiga) – o filho, Antoine Olivier Pilon, é uma versão graúda, imprevisível, grotesca e profundamente comovente do Macaulay Culkin de Home Alone, ou seja, é tocado espiritualmente pelo Alex/Malcolm McDowell de Laranja Mecânica.

Fazendo um filme já não sobre a sua mãe, fazendo um filme já não com a determinação caprichosa, adolescente, narcísica de a “matar” para poder exibir a sua voz, como no primeiro opus, mas fazendo um filme sobre a Mãe e oferecendo-lhe o seu cinema. “Para ganhar. Para fazer o que a vida não nos deixa fazer. É a beleza deste métier”, disse numa conferência de imprensa que se prolongou mais do que o habitual, na qual percebeu que tinha a imprensa a seus pés, e que afinal todos lhe desejam a Palma – uma vez que não é possível um filme receber o prémio máximo e ao mesmo tempo outros galardões, a coisa pode ser jogada contra a Palma de Ouros, se o júri preferir premiar a(s) intérprete(s) do filme.

Ele disse-se viciado na adrenalina de um plateau de cinema, vício esse “de elevado consumo” – e causado também, o que começa a deixar de ser surpreendente, por uma inquietação e um toque de gravidade: “Sei que sou novo, mas não sei quanto tempo me resta para criar.” Falou no desaparecimento natural da figura do pai nos filmes – apenas “acontece”, corresponde ao que se passa na sua vida, foi criado pela mãe, o contacto com o pai foi tardio, agora é “amigável”, mas não é figura que o impressione a ponto de querer fazer filmes sobre ele. E regressou (sempre) a Titanic, de James Cameron, o filme que lhe mostrou que havia realização, música, guarda-roupa, o filme que deu “fé e ambição” às suas histórias, e que lhe tirou o medo de contar as suas histórias. Assinalou que brevemente vai abrandar, para regressar à escola, para estudar. E para “dar beijos” em pessoas da sua idade.

Ovni Godard

Ken Loach anunciara, durante a rodagem problemática de Jimmy’s Hall, que esse seria o seu último filme. Terá voltado atrás, agora que tudo passou, porque do cinema não se desliga facilmente. O seu filme é mais do mesmo – pior do que o mesmo, aliás. Elogio da dissidência, a partir de um episódio real da História irlandesa, a deportação para a América do comunista James Gralton, nos anos 30, não tolerado pelo establishment político e religioso irlandês, que não viu com bons olhos o seu projecto de uma sala para noites de dança e dias de discussão e arejamento de ideias, é middle of the road. Como o era, aliás, o filme de Loach que venceu a Palma de Ouro em 2006, The Wind that Shakes the Barley. Nesse nível de convenção encontra-se com os últimos filmes de Mike Leigh ou dos irmãos Dardenne.

Numa competição com estes parâmetros, o Adieu au langage de Godard faz figura de ovni, disseram-lhe. Pode-se perguntar se Godard não é já o ovni de prestígio para os programadores do festival, por exemplo, que em contrapartida não toleraram Abel Ferrara, nem o facto de ele não ter querido fazer cortes a Welcome to New York e por isso o filme ficou no limbo das Sessões Especiais, projectado em ritual underground, numa praia.

Sétima selecção de Godard em competição no festival, condiz com a condição de marginal de prestígio não ter vindo a Cannes, até porque, disse, receber uma Palma de Ouro faz mal; ele tem conseguido evitá-lo até hoje. Adieu au langage faz-se das idiossincrasias godardianas de sempre, da sua solidão, de uma voz off ruminante que espectaculariza o desaparecimento, o fim (“On va bientôt tous avoir besoin d'interprètes, ne serait-ce que pour se comprendre soi-même"), de um casal e das suas ficções em estilhaços.

Adieu au langage faz-se em frente à televisão e na sanita de uma casa de banho, com pedaços de corpos que ainda estavam inteiros na sua tristeza em Passion (1982) ou no Prenom: Carmen (1983). E faz-se fabricando uma curiosidade de bricoleur e com a ilusão de uma inocência quase infantil com a utilização do 3D. Mas quem parece livre e de corpo inteiro é Roxy Mieville, o cão de Godard. Não se sabe para onde vai esta descarga inventiva, nem que sentido lhe atribuir aos estilhaços.

A relação com o cinema de Godard passa por permitir um encontro de solidões, há até qualquer coisa de reconfortante nisso (e com este filme há este cão), não é preciso perguntar. O seu lugar estará sempre protegido (venha ele a Cannes ou não), a sua solidão intacta. “Que pensez-vous du film de Godard?” Não é para pensar.

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