Bluff de Putin arrisca isolamento internacional da Rússia
Depois das divisões iniciais, o Ocidente alinhou-se e prepara sanções mais fortes contra a Rússia, caso a anexação da Crimeia vá em frente. Moscovo pode ver-se afastada das decisões internacionais.
O resultado do referendo é largamente antecipado, numa região cuja maioria da população tem origem russa e onde o saudosismo em relação aos tempos da União Soviética é grande. Mas o que fará Vladimir Putin com a Crimeia? O líder russo tem surpreendido a generalidade dos observadores e a velocidade do processo na Ucrânia torna qualquer previsão arriscada. Uma das apostas de Putin poderá ser a de utilizar a Crimeia como trunfo negocial para obter vantagens no futuro político da Ucrânia.
Esta estratégia passaria por “pressionar o governo de Kiev a aceitar um modelo de federalização da Ucrânia, o que iria permitir que as regiões do Leste desenvolvessem relações mais próximas da Rússia”, explica ao PÚBLICO John Lough, do Programa Rússia e Eurásia do think-tank britânico Chatham House. “Isto iria colocar a Ucrânia numa situação em que está desunida e não poderia funcionar normalmente como país”, acrescenta.
Putin poderia aproveitar a janela de oportunidade dada pelos EUA na sexta-feira, que demonstraram abertura para aguardar pela anexação efectiva da Crimeia pela Rússia. Moscovo aceita recuar na sua intenção, evitando sanções mais pesadas, e pode negociar a federalização da Ucrânia.
Mas o bluff de Putin pode vir a revelar-se demasiado arriscado. “As acções da Rússia na Crimeia começaram a consolidar-se de uma forma nunca antes vista”, nota Lough. O problema para Moscovo é a expectativa já criada e um potencial recuo pode ser visto como uma demonstração de fraqueza do líder russo, ideia que desagrada bastante a Putin. John Lough questiona se haverá ainda um “botão de desligar”, para responder de imediato: “Parece-me que já se avançou demais.”
Resultado anunciado
Apesar da previsibilidade do desfecho da consulta da Crimeia, as autoridades pró-russas limitaram a margem para surpresas. A consulta é feita através de duas perguntas. A primeira refere-se directamente à anexação do território pela Rússia: “É a favor da reunificação da Crimeia com a Rússia como parte da Federação Russa?”. A segunda pergunta é menos directa: “É a favor da restaurar a Constituição de 1992 e o estatuto da Crimeia como parte da Ucrânia?”.
O retorno à Constituição de 1992 confere uma autonomia alargada à Crimeia, conferindo o poder às autoridades regionais de integrarem a realidade territorial que desejarem. Na prática, a segunda opção permite que a Crimeia seja absorvida pela Rússia, o que significa que o referendo não dá voz à população que defenda a manutenção do status quo.
Perante a inevitabilidade da vitória da integração da Crimeia, o processo será muito rápido. Depois do referendo, as duas câmaras legislativas russas vão votar a anexação do território e irá caber ao Presidente a ratificação final. “Estas três acções devem demorar no máximo duas semanas e no final deste período já deveremos ter uma Constituição”, calculou recentemente o presidente do Parlamento regional, Volodimir Konstantinov, em declarações à agência estatal russa RIA Novosti. A Duma (parlamento russo) tem marcado para dia 21 na sua agenda oficial a discussão para a integração de um território estrangeiro, escassos cinco dias depois do referendo na península do Mar Negro.
Ocidente dividido
Pouco mais de uma semana se passou entre o pedido formal do Parlamento da Crimeia para a anexação do território, a 6 de Março, e o referendo deste domingo. Durante esse período a diplomacia mundial pôs-se em acção numa luta contra o tempo para evitar a marcha da região em direcção a Moscovo. Cada dia que passou simbolizava mais um falhanço das negociações, tornando-se cada vez mais numa conversa de surdos.
De início, tanto a Europa como os Estados Unidos divergiram entre si na forma como abordar Putin. No seio da União Europeia, sempre fustigada pelas demoras e hesitações nos seus processos decisórios, desenharam-se duas linhas de acção. Os Estados do Leste, encabeçados pela Polónia, pediam sanções fortes contra Moscovo, motivados pelos receios de que a vitória na Crimeia possa lançar Putin em ofensivas semelhantes junto dos seus países. Por uma diferente estratégia alinhavam outros líderes europeus – com a chanceler alemã, Angela Merkel, na liderança – que mostravam preferência por sanções mais leves e por um discurso menos penalizador em relação a Putin.
“A opinião convencional até agora foi de que os alemães seriam guiados sobretudo pelos seus interesses comerciais”, observa John Lough. A Alemanha importa um terço do seu petróleo e gás da Rússia e há mais de seis mil empresas alemãs com negócios no país, de acordo com a Reuters. O Reino Unido também apareceu como partidário da abordagem mais cautelosa, alimentada por receios do impacto negativo que as sanções poderiam acarretar. Só na praça financeira de Londres estão cotadas setenta grandes empresas russas de hidrocarbonetos, como a Gazprom, a Rosneft ou a Lukoil, para além de que a capital britânica é dos locais mais escolhidos pelos oligarcas russos comprarem casas luxuosas.
Em Washington, a gestão do Presidente norte-americano, Barack Obama, foi duramente criticada. O republicano John McCain afirmou que a crise na Ucrânia é “o resultado de uma política externa ineficaz em que já ninguém acredita na força da América”. No início do seu mandato, Obama privilegiou uma política de “recomeço” (reset) nas relações com a Rússia, que hoje se encontra profundamente comprometida.
Sanções no horizonte
A velocidade vertiginosa dos acontecimentos na Crimeia – no espaço de duas semanas, milícias pró-russas tomaram os principais edifícios administrativos e bases militares, colocaram no poder autoridades pró-Moscovo e foi marcado um referendo – veio pôr o Ocidente em estado de alerta e as posições passaram a ter maior coordenação nos últimos dias.
Apesar de as negociações terem continuado, sobretudo entre os ministros dos Negócios Estrangeiros dos EUA, John Kerry, e russo, Sergei Lavrov, o discurso dos líderes ocidentais endureceu. Obama recebeu o primeiro-ministro interino da Ucrânia, Arseni Iatseniuk, na Casa Branca, e afirmou estar do lado das novas autoridades, que Moscovo se recusa a reconhecer. De Iatseniuk recebeu um pedido de ajuda militar para o país que ficou, de momento, suspenso.
Mas foi da Alemanha que veio o aviso mais duro. Num discurso surpreendentemente inflamado e emotivo, Merkel alertou, na quinta-feira, para a iminência de uma “catástrofe” caso a Rússia mantenha o apoio ao referendo da Crimeia. “Isso não iria mudar apenas a relação da UE com a Rússia, iria causar danos massivos à Rússia, económica e politicamente”, disse a chanceler alemã. As declarações de Merkel indicam que “a Alemanha deverá tomar uma posição forte e impor sanções à Rússia”, nota o especialista da Chatham House, que diz serem “um problema sério” para Moscovo.
Merkel é vista como a principal interlocutora europeia de Putin, com quem mantém relações diplomáticas há 14 anos, para além de ambos dominarem perfeitamente os idiomas um do outro. “Nem sempre foi [uma relação] fácil, mas Putin conhece Merkel melhor e respeita-a mais do que aos outros líderes”, afirmou à AFP o presidente do Fórum Alemão-Russo em Berlim, Alexander Rahr. A Alemanha chegou mesmo a apoiar as posições russas, mesmo quando contrariavam a linha ocidental. Foi o caso do veto de Merkel à entrada da Ucrânia e da Geórgia na NATO, durante a cimeira de Bucareste em 2008.
Contudo, nem a “relação especial” entre os dois líderes deverá dar frutos desta vez e a posição forte assumida por Merkel nos últimos dias reflecte isso mesmo. “Ela tem uma relação com ele, mas há limites para o impacto que isso possa ter”, nota Stefan Meister, do Conselho Europeu para as Relações Internacionais. “Putin tem uma estratégia muito clara em relação à Crimeia e não será persuadido pela Alemanha”, acrescentou o analista.
Isolamento russo
Na segunda-feira, os ministros dos Negócios Estrangeiros da UE vão reunir em Bruxelas para decidir se avançam para o próximo pacote de sanções contra a Rússia, que podem passar pelo congelamento de bens e pela suspensão de vistos de responsáveis russos. Mas mesmo sem a sua aplicação efectiva, a economia russa já está a sofrer com a incursão na Crimeia. A Goldman Sachs reviu em baixa as perspectivas de crescimento económico da Rússia, passando de 3 para 1%, e a bolsa de Moscovo atingiu o valor mais baixo dos últimos quatro anos.
Mais forte do que qualquer sanção económica poderá ser o impacto para o relevo da Rússia na cena internacional. Os países ocidentais “podem muito provavelmente concluir que Moscovo é um parceiro duvidoso, que colocou em causa o quadro de segurança, não só na Ucrânia mas na região”, nota John Lough. “A questão que se coloca é ‘quão valiosa é a cooperação que tínhamos com a Rússia até agora, e será que ainda precisamos dela?’.”
Em risco podem estar importantes negociações que sentam à mesa a Rússia e o Ocidente, tais como o grupo 5+1 para o desarmamento nuclear do Irão ou as conversações de paz sobre a Síria. O caminho a tomar pela Rússia poderá vir a ser a grande dor de cabeça dos líderes ocidentais nos próximos anos.