Quando morreu Enrique Morente, em Dezembro de 2010, o mundo perdeu um revolucionário do flamenco. Agora que, inesperadamente, morre Paco de Lucía, perdeu outro. Um no cante e outro na guitarra, agitaram quietudes, mudaram mentalidades, sublimaram sons. Fizeram, ambos, o flamenco mais rico e mais universal sem perder o norte das suas raízes, e isso nenhuma morte poderá apagar.
Muitos terão começado a ouvir Paco de Lucía apenas depois da edição do célebre concerto que o juntou a Al di Meola e John McLaughlin em São Francisco, Califórnia, a 5 de Dezembro de 1980 (o disco, de 1981, chamou-se Friday Night In San Francisco). Mas já muito antes disso ele começara uma luminosa carreira ao lado do também genial Camarón de la Isla (1950-1992), que durou os discos suficientes até começar a sua própria carreira a solo, em 1977.
Em Portugal tocou várias vezes. Recordo uma delas, com um Coliseu de Lisboa rigorosamente cheio a vibrar com a agilidade das suas cordas, com a elegância e a cadência dos seus ritmos, com o seu fogo interior feito luz no suor do palco. Nas vésperas, disse Paco de Lucía a Fernando Magalhães, jornalista do PÚBLICO: “Quando chega o duende da inspiração tenho a sensação de que me vou, que saio fora de mim, que flutuo no ar”. E era essa a sensação que transmitia nos muitos palcos que felizmente pisava, como naquela noite lisboeta de 31 de Outubro de 1991.
Se o atraíam o jazz ou a música brasileira (nos discos que gravou com Al di Meola e McLaughlin, em 1981 e 1996, havia versões instrumentais de temas de Gismonti e Bonfá, respectivamente Frevo rasgado e Manhã de carnaval), foi a paixão do flamenco que norteou a sua carreira. Isso não o impediu de se aventurar em territórios clássicos (tocou apaixonadamente De Falla e o Concierto de Aranjuez, de Joaquín Rodrigo) ou até pela pop mais massificada (gravou com Bryan Adams), mas nada disso lhe ofuscou o brilho. Gravações de diferentes épocas testemunham, com escassos momentos menores, o génio que Paco de Lucía sempre foi. O seu eclipse é, pois, passageiro.