Crescem couves e plantas medicinais entre prédios e estradas
Hortas comunitárias, clandestinas, sociais, espontâneas. Existem pelo menos 70.235 hortas urbanas na Grande Lisboa. Uma dúzia de horticultores mostram os seus quintais ao ar livre da cidade. O local onde passam mais tempo do que a cozinhar ou a comer aquilo que plantam.
Estes talhões fazem parte do programa Hortas de Cascais. As primeiras hortas comunitárias da Área Metropolitana de Lisboa nasceram em 2009, no Parque Urbano do Alto dos Gaios, na freguesia do Estoril. Agora já existem 1372 talhões apoiados pelas câmaras em 11 concelhos da Grande Lisboa.
Com uma enxada portátil com uma lâmina de dez centímetros, José Fernandes empurra a terra das laterais dos alhos para os cobrir. “Cresceram bem e já estavam de orelhas de fora”, diz, fixando o chão. Tem a horta na Quinta dos Lombos, na freguesia de Carcavelos, desde finais de Setembro. A plantação de José está um pouco atrasada. Nem todas as sementes plantadas dão frutos e legumes, justifica.
Ao lado, está outro talhão, mas bastante recheado. “Em casa, ele tem uma planta da horta onde estão as indicações sobre cada cultura, desde o tempo de vida ao espaço que ocupa”, diz Teresa Matos sobre o marido. “Ele passa aqui três, quatro vezes por dia”, continua. Viciado na sua horta que tanto trabalho deu, Sérgio diz que gosta de a vigiar para que nada se estrague.
André Miguel, responsável pelo projecto Hortas de Cascais, explica que a agricultura urbana tem uma grande importância para a comunidade. Inspirados por aquilo que já se fazia no Grande Porto e perante o número de hortas clandestinas, de uso espontâneo, a Câmara de Cascais percebeu que as pessoas queriam ter a sua horta, uns por necessidade, outros por lazer, conta.
Ana Sofia deseja plantar uma farmácia natural no cantinho que tem na Quinta dos Lombos. Tem o seu talhão desde Setembro, mas, devido a um braço engessado, a terra permanece castanha, inviolada. A farmacêutica, agora desempregada, expressa o plano: “Quero só flores e ervas aromáticas para ter plantas medicinais”.
Perto do Colombo, em Lisboa, Patrocínia Sabugueiro levanta a foice pela antepenúltima vez no dia, enquanto passa atrás de si um jovem a correr na ciclovia. Há dois anos que tem uma horta comunitária. Já era horticultora, mas o espaço diminuiu. “Antes tinha aqui uma de 1000m2, agora tenho 150”, lamenta, encolhendo os ombros. Mas não se aborrece e continua a trabalhar a terra com a mesma vontade de há 27 anos, quando começou a sua horta clandestinamente naquele local.
Mais abaixo, neste parque hortícola da Quinta da Granja, em Benfica, Maria, João e Mug, a cadela com pêlo castanho-claro e de olhos azuis, têm um talhão pela primeira vez. O casal diz que tudo foi cultivado por eles. “Já temos morangos, uma laranjeira com uma laranja, couve, alface, tomate, cebola e ervas aromáticas.” Inexperiente, o casal frisa que a interajuda entre os horticultores foi fundamental. “A formação [dada pelas câmaras] é apenas um começo.”
António Furtado já tem “muita experiência”. De enxada na mão, enquanto arranca as ervas secas espalhadas pela terra ainda húmida, explica, gesticulando com a mão livre do cabo, como é que se faz uma boa horta. “Primeiro é preciso limpar o terreno tirando a palha. Depois cerca-se. Solta-se o terreno porque está rijo. E põe-se as sementes. Mais tarde, quando a terra estiver seca, tira-se a água da ribeira e rega-se”. Está a começar uma, ao lado de um espaço verde com caminhos pedestres e com um riacho, junto do Dolce Vita Tejo, na Amadora. António está desempregado e não quer ficar em casa de braços cruzados. Não sabe se o solo que cava é bom. Mas do outro lado da ribeira, ao estilo dos socalcos do Douro, couves e favas crescem como se estivessem num dúplex hortícola.
Necessidade versus lazer
No concelho de Loures, num vale verde com vista para a estrada onde passa o 313, o único autocarro de acesso ao Bairro da Apelação, estão centenas de hortas espontâneas. Ao lado deste bairro social da freguesia de Frielas os moradores da povoação começaram, há cerca de um ano, a cultivar neste espaço.
A madeira no chão que traça o apertado carreiro entre estas hortas está encharcada. O caminho está coberto de lama e água. Mas Orlando Mendes consegue chegar ao seu espaço. Com um casaco cor de vinho de flanela quadriculada, de calças de ganga escuras e botas pretas, não está ali para cavar a terra. Com o mau tempo dos últimos dias, não era possível fazê-lo. “Vim só ver se não se estragou nada.”
Nas tábuas que improvisam os caminhos, cruzou-se com Augusto Pontes, o autor da ideia. “Este era um espaço sem nada. Por que não poderia ser usado?” Mãos à obra. Juntou portas de madeira, cabeceiras de cama, tábuas, canas, e cercou uma grande área para si. Tem plantado favas, couves, ervilhas, batatas. Augusto explica que começou a fazer a horta porque não tinha o que comer. Desempregado, aquilo que consegue produzir é o alimento da sua família. Mas no Verão torna-se mais complicado porque a água já não cai do céu.
Mais a norte, na Póvoa de Santa Iria, ouvem-se crianças a rir e a falar alto perto de Mário Caceres. Estavam a jogar à bola na escola paralela às hortas. Mário tem um talhão de 40m2 com duas portinhas de canas onde se lê “entrada proibida” e uma cerca com uma altura desencorajadora para intrusos. Fica grande parte do dia ali. Reformado, gosta de estar atento e há sempre algo para fazer. Uma folha seca de couve tem de ser tirada ou umas malaguetas apanhadas.
Ter uma horta requer dedicação e tempo. Mesmo assim, as hortas urbanas proliferam. Agora com uma vertente cada vez mais comum: as câmaras criam-nas para reabilitar os espaços verdes. A maioria dos projectos começou em 2011. E o ano passado houve um aumento significativo: 654 hortas comunitárias foram criadas só na Grande Lisboa. “Fica mais barato construir um parque hortícola do que construir um espaço verde”, diz André Miguel. Apesar disso, ainda se multiplicam hortas espontâneas. A maioria daqueles que as têm, tanto as usam para se manterem ocupados como para terem um meio de subsistência. Por sua vez, as hortas comunitárias são mais uma actividade de lazer.
Contudo, a necessidade também está presente nestas. Do talhão em Alcabideche de Malam para a mesa da cozinha, nada é desperdiçado. Mariama explica que “corta o ramo da cebola, parte aos pedacinhos, esmaga com pimentão e azeite e junta com arroz branco. Fica uma delícia!” O casal da Guiné-Bissau tem cinco filhos, ele está desempregado e ela tem um trabalho de apenas quatro horas. Retiram da terra uma grande ajuda.
As hortas servem como um complemento económico porque a maioria dos frescos podem ser colhidos. “Normalmente existe uma relação entre a necessidade e a quantidade: quanto maior a abundância de alimentos num talhão, maior o grau de necessidade”, explica André Miguel.
Por outro lado, a qualidade dos produtos é sempre um factor defendido pelos orgulhosos horticultores. Em Carcavelos, Isabel Campos, vizinha de José Fernandes e Sérgio Matos, tem a horta mais crescida. Ressalva que o sabor é totalmente diferente. “O gosto dos produtos muda, não só porque são biológicos, mas também porque dá um enorme gozo colher aquilo que se plantou”. No seu talhão, a organização prima. Canas ao alto a fazer um triângulo, presas por um fio branco de croché, demonstram-no. A professora reformada explica: “Uma horta inserida junto a um bairro deve ter uma certa estética. Devemos preservá-la porque ninguém gosta de ter uma vista para um jardim que parece uma barraca”.
Brincar aos agricultores
Apenas um dos filhos de Malam, com dois anos, gosta de brincar aos agricultores quando tenta arrancar folhas de couves. Mas as hortas comunitárias pretendem também contribuir para o desenvolvimento das relações interpessoais e intergeracionais. Inseridas numa comunidade, ao ar livre, podem ser uma alternativa de ocupação de tempos livres e uma oportunidade para os mais jovens de adquirirem competências agrícolas.
Na Apelação, Orlando conta que apenas um jovem aderiu à ideia das hortas, ficando com uma. Depois desistiu. “Não queria ter trabalho e vendeu-a a um vizinho por 20 euros. Gastou-os de seguida ali no café”.
Por sua vez, Mário está sozinho na sua horta em Vila Franca de Xira. Conta que “há quem só passa lá uma vez por mês, apanha umas couves e vai embora”. Dos 84 horticultores, apenas oito se juntam para conversar no banco de madeira que fizeram em cima do tronco de uma árvore encurralada entre dois talhões.
Em Lisboa, Maria, João e Mug continuam o seu passeio. No Verão costumam ficar mais tempo. “É mais agradável porque os dias longos trazem mais disponibilidade para quem trabalha”, explica Maria, enquanto fecha a porta feita de painéis de madeira que isola o seu talhão. Mais acima, Patrocínia arranja-se para ir embora. “Uma mulher tem sempre muito que fazer”, diz.
Em Cascais, Mariama também vai para casa, mas Malam vai ficar a colher umas alfaces. Em Carcavelos, José e Sérgio ficam a trabalhar a terra, apesar de não estar tão agradável, como há uns dias, quando estavam mais colegas nas hortas.
Distintas, as hortas espalhadas pelo distrito de Lisboa estão tanto à beira de estradas, como no meio de um espaço verde ou no centro de uma povoação. Uma horta passa a ser vista como um jardim de alfaces, cebolas, morangos, couves, e CD, pendurados para espantar os pássaros comilões de legumes, fruta e sementes.
Augusto Pontes já limpou a terra e vai agora procurar algo abandonado em descampados ou perto de caixotes do lixo para vedar o espaço que acabou de arranjar. Ali crescerá a única alternativa que tem ao subsídio de desemprego que não recebe.
Grande Porto inaugurou 85 talhões só este ano
A Lipor – Serviço Intermunicipalizado de Gestão de Resíduos do Grande Porto – em parceria com oito municípios da região inaugurou este ano mais 85 talhões no âmbito do projecto Hortas à Porta. Os últimos 49 talhões foram abertos no início deste mês em Valongo.
Benedita Chaves, responsável pelo projecto, diz ao PÚBLICO que esperam “abrir mais cinco parques hortícolas este ano”. Em 2013 conseguiram distribuir 217 talhões. O projecto Hortas à Porta, criado em 2004, abrange os municípios de Vila do Conde, Valongo, Póvoa de Varzim, Porto, Espinho, Gondomar, Maia e Matosinhos. Foi pioneiro em Portugal e nasceu a partir de um projecto que visava sensibilizar a população para a compostagem caseira e a agricultura biológica no Grande Porto.
Benedita Chaves afirma que surgiu na Maia há quase dez anos porque os munícipes queriam ter um espaço para praticar agricultura biológica. “Tiravam cursos connosco e gostavam de plantar produtos, mas não tinham um local.” Dois dias depois de divulgarem o concurso para distribuírem 74 talhões, já tinham recebido 200 candidaturas. Hoje as Hortas à Porta já têm 966 talhões nos oito municípios.