De resto, em Dezembro, 99 por cento dos portugueses nunca tinha ouvido falar, nem queria ouvir falar em Miró. Na oceânica ignorância em que “a geração mais bem preparada de sempre” rejubila, isto é um pormenor sem qualquer importância. Eles não sabem nada de pintura, como de literatura, como de história; nem sequer sabem que a água ferve a 100 graus C; mas conhecem em pormenor as bandas pop com que foram criados e muito mal criados, e o que se passa dia a dia nofacebook.
Talvez não seja inútil observar que o surrealismo, como seria de esperar, influenciou em Portugal muito mais profundamente a literatura do que pintura. Alexandre O’Neill e Mário Cesariny não são comensuráveis com, por exemplo, Da Costa e Vespeira. O’Neill mudou a língua, Vespeira pouco mudou. Por outras palavras, o surrealismo entrou em Portugal como várias modas da França ou, se quiserem, “tendências” que transformaram um pouco o curso da cultura indígena, mas que no fundo não romperam com ela, nem (excepto no caso de O’Neill) lhe trouxeram nada de novo. Quem conheceu algumas das personagens da época não ignora que Miró não meteu para aqui prego nem estopa. Em 1950 não era mais conhecido e admirado do que as centenas do que Salazar não permitia que se visse ou falasse.
Por tudo isto, espanta agora que se diga, na oposição e no governo, que os Mirós do antigo BPN, adquirido por meios que por enquanto ainda não se tornaram claros, ascenderam a “património nacional”. Não o são pela origem, não o são pela natureza e, principalmente, pelo quase nulo peso que exerceram sobre a pintura local. Conservar aqui uma colecção de 85 Mirós não faz qualquer sentido, nem servirá (na falta de um verdadeiro museu de arte moderna, decentemente organizado) para instruir ninguém. A polémica sobre a colecção Miró é outra triste manifestação da saloiice atávica. Não se investe na reabilitação urbana, nem em monumentos em ruínas ou perto disso, nem em bibliotecas, nem em arquivos. Mas precisamos, urgentemente, de 85 Mirós.