Quando a corte de Felipe IV era a casa de Velázquez
O Museu do Prado inaugura no dia 7 mais uma exposição dedicada ao maior pintor espanhol do Século de Ouro. São 29 pinturas do mestre de Sevilha e dos seus seguidores. Porta aberta para corte de Felipe IV e para o fim de uma dinastia
Os jornalistas espanhóis e estrangeiros vão chegando à galeria do primeiro andar para uma visita rápida antes da conferência de imprensa de Velázquez y la familia de Felipe IV (1650-1680), a exposição que o Museu do Prado, em Madrid, inaugura com todo o aparato no dia 7, com a presença da rainha Sofia, nada mais natural quando se trata de voltar os holofotes para a obra daquele que foi um dos mais importantes pintores de corte da Europa do século XVII.
Com esta exposição, Diego Velázquez (1599-1660) volta a estar em foco na sua própria casa, já que pertence às colecções públicas espanholas, em particular à que está depositada na pinacoteca madrilena, uma das mais importantes do mundo, a maior fatia da produção do pintor. Ao todo, Velázquez y la familia de Felipe IV reúne 29 obras do artista sevilhano, do seu atelier e de dois dos seus seguidores, divididas por cinco pequenos núcleos temáticos - 15 são do mestre que trocou Sevilha, a cidade onde nasceu, por Madrid, para em 1623 se tornar pintor da corte. Velázquez e Felipe IV viriam a conviver durante 40 anos, mas da relação entre os dois pouco se sabe, garantia Portús esta manhã aos jornalistas, dizendo apenas que o rei achava que o artista tinha um feitio difícil e que o enganara mil vezes.
“O que sabemos é que, se pudesse ter escolhido, provavelmente não voltaria de Itália em 1651 e que, se tivesse morrido na travessia, não teria sido um pintor tão importante para a História da Arte”, diz o comissário, explicando que a exposição que está prestes a ser inaugurada se centra na última década da sua carreira, “uma década que não é de continuidade, mas de evolução”, em que Velázquez cria obras-primas sucessivas.
Vindo de Roma e da corte papal de Inocêncio X, cujo retrato se encontra à entrada da galeria, provavelmente numa segunda versão que o próprio artista terá trazido na bagagem, “Velázquez transforma-se num retratista de mulheres e crianças, o que introduz variações importantes na sua composição, na atenção ao detalhe, na gama cromática que usa, mais alargada e serena”, assegura Portús. “São deste período as obras mais sensuais de toda a sua carreira.”
Uma sensualidade que transparece dos retratos que faz, sobretudo, de Maria Teresa da Áustria, a única filha que sobreviveu do primeiro casamento de Felipe IV, que tem lugar de destaque no núcleo que a relaciona com a rainha Mariana da Áustria, segunda mulher do pai. A relação entre estes três personagens é um exemplo da complexidade familiar das cortes europeias da época, em que todos parecem ser primos e primas: Mariana, filha do imperador austríaco Fernando III, chega a Madrid em 1648 para casar com o tio, Felipe - Maria Teresa é, por isso, sua prima e futura enteada.
O regresso de Roma
E é porque há uma nova rainha e, em breve, espera-se, um herdeiro varão, que Felipe IV reclama a presença de Velázquez, que volta de Roma contrariado para dar início a uma série de retratos reais que tem por protagonistas mulheres e crianças, ou melhor, a princesa, a rainha e os seus infantes.
O pintor chega a poucos dias do nascimento do primeiro filho do casal, lembra o comissário, que afinal foi uma menina, Margarida, a mais representada na exposição que fecha a 9 de Fevereiro (aparece 11 vezes). Ela é a infanta de cabelos loiros para quem se viram todas as atenções no célebre retrato As Meninas, a mesma que mais tarde casaria com o seu tio, Leopoldo I.
Estes retratos eram muitas vezes feitos para enviar às cortes europeias em busca de alianças ou casamentos para as princesas, sempre à procura de uma situação mais vantajosa para Espanha que, recorda o comissário, até ao nascimento de Felipe Próspero, em 1657, estava à beira de uma crise dinástica (Felipe IV não tivera ainda um filho varão) e que, quatro anos antes, declarara bancarrota. É preciso não esquecer ainda que, em 1656, o ano em que Velázquez pinta As Meninas, Felipe estava em guerra com França, Espanha e Portugal.
Este retrato real, um dos mais famosos e complexos da pintura europeia, é uma das peças centrais da exposição, mas para vê-la é preciso ir à sala 12, seguindo o habitual percurso da colecção permanente - tirá-lo do lugar, mesmo que por apenas quatro meses, não era uma opção.
Mas na exposição há uma versão desta obra de Juan Bautista Martínez del Mazo, genro e seguidor de Velázquez. Nela se centra boa parte do debate científico que Velázquez y la familia de Felipe IV poderá gerar, já que há um ex-conservador do Prado, Matías Díaz Padron, que, depois de 20 anos de investigação, continua a defender que se trata de um estudo preparatório, já muito detalhado, saído das mãos do artista sevilhano.
“Esta exposição permitirá ao público tirar as suas próprias conclusões sobre estes e outros retratos porque põe à conversa obras de Velázquez com as dos seus principais seguidores [Mazo e Juan Carreño de Miranda] e até do seu atelier”, explica o comissário, totalmente avesso à tese de Díaz Padron.
É preciso um blockbuster
Em época de grandes dificuldades financeiras, o Museu do Prado conta com Velázquez para estancar a queda no número de visitantes. Em Maio, a pinacoteca admitiu que previa para 2013 uma quebra drástica, na ordem dos 25%, face ao ano passado. Na mesma altura anunciou que tinha na manga uma exposição que podia minimizar os danos. E agora confia em Velázquez para atrair milhares.
Não só “Velázquez é Velázquez” - a mostra que o Prado lhe dedicou em 1990 continua a ser campeã de visitantes e mudou por completo a vida do museu, disse esta sexta-feira o director, Miguel Zugaza -, como a exposição reúne um “conjunto impressionante de obras”, algumas pela primeira vez em Espanha, graças aos empréstimos de vários museus estrangeiros, com destaque para o Kunsthistorisches (A Infanta Margarida em vestido rosa, por exemplo), o museu de história de Viena, mas também para a Apsley House, em Londres (Inocêncio X), o Metropolitan, em Nova Iorque (A Infanta Maria Teresa), o Museu de Belas Artes de Boston (A Infanta Maria Teresa) e Kingston Lacy, propriedade que pertence ao National Trust britânico e guarda As Meninas de Mazo, que não se viam em Espanha há dois séculos.
Zugaza, director do Prado há 11 anos, vê em Velázquez y la familia de Felipe IV o “retrato final de uma dinastia” e a oportunidade de perceber um pouco mais como funcionava a oficina do artista e como a sua obra inaugurou uma tradição na pintura de corte que depois se foi adaptando às circunstâncias sociais e políticas.
“Esta é um exposição aberta ao grande público, mas também aos debate especializado. E com ela a casa de Velázquez transforma-se, por uns meses, no atelier de Velázquez”, acrescentou o director, que começou a sua intervenção por sublinhar a importância do apoio da Fundação AXA, o mais antigo mecenas do Prado, na realização de Velázquez y la familia de Felipe IV. Não é de estranhar, já que este ano, segundo o diário El País, o museu sofreu um corte de 30% na sua dotação governamental, contando cada vez mais com os privados e com a sua própria capacidade de gerar receitas. Miguel Zugaza espera grande afluência de visitantes, mas não usou a palavra blockbuster e admitiu que não conta com números semelhantes aos de 1990. Para já basta-lhe ter mais Velázquez na casa de Velázquez. E, como diz Javier Portús, dos mais sedutores que há.
Velázquez y la familia de Felipe IV é inaugurada a 8 de Outubro e fica até 9 de Fevereiro de 2014.
O PÚBLICO viajou a convite do Turismo de Espanha e do Museu do Prado