Portugal já declarou bancarrota parcial em 1891 e saiu-se bem
Nem tudo é mau na bancarrota. Até à grande crise financeira de 1891, as dificuldades em pagar a dívida externa eram resolvidas com o aperto da economia e quem sofria eram as camadas "menos abastadas". Mas a declaração da bancarrota serviu ao Governo para mudar a forma de se financiar e relançar a economia.
Esta visão benigna da bancarrota nacional, como uma opção política do então ministro da Fazenda Oliveira Martins, é lembrada pelo historiador da economia portuguesa Pedro Lains, professor do Instituto de Ciências Sociais de Lisboa. E até seria algo bastante actual.
"Na Irlanda, chegou-se a falar do reescalonamento da dívida", adianta, e, "eventualmente, isso seria mais justo". Porquê? Porque a sua causa foi a deficiente gestão bancária do "excesso de liquidez com que as economias foram inundadas". Provocaram enormes movimentações de capitais, maus investimentos. "Os Estados vieram socorrer os bancos e agora são os Estados que precisam de ser socorridos", conclui Pedro Lains.
A bancarrota poderia ser uma solução? Se calhar, não. É um debate a fazer, mas o que aí vem parece saído dos compêndios de História. Recue-se a esses tempos.
"Há uma grande diferença entre o século XIX e XX", começa Lains. "É que, no século XIX, foi necessário financiar a construção do Estado. Em 1830, o Estado era muito débil. O Governo em Lisboa podia emitir uma ordem que não chegava a Trás-os-Montes".
A centralização deu-se por toda a Europa. E a dívida pública foi de longe - em Portugal - a fonte de financiamento. O sistema fiscal era incipiente e estava centrado nas taxas alfandegárias e nas transacções, quase nada sobre o rendimento. A dívida cresceu à medida dos gastos. "À cabeça, o funcionalismo, haver administração em todo o lado. Depois, as obras públicas", salienta. Estradas, caminhos-de-ferro, portos, escolas e instituições sociais. Mais a defesa e, "claro, o serviço da dívida que ia crescendo".
Portugal aderiu ao padrão-ouro em 1854 e ganhou crédito nos mercados de Londres e Paris. O primeiro empréstimo internacional surge em 1856. Tentou-se estruturar o sistema bancário e fiscal. Criou-se em 1868 a contribuição predial e industrial - que iriam ficar até 1989. Mas em 1880 falhou a reforma fiscal sobre o rendimento. Criar impostos gerava revoltas e - como recordam José Luís Cardoso e Pedro Lains no artigo Public finance in Portugal, 1796-1910 - o recurso à dívida era a solução de curto prazo politicamente mais indolor. No dealbar da crise, os impostos sobre o rendimento eram apenas 15 por cento da receita, que, por sua vez, representavam só 5,5 por cento do PIB.
Mas no final do século XIX Portugal estava longe da Europa. A única estrada decente unia Lisboa ao Porto e a população era analfabeta. E se a dívida absorveu 31 por cento do PIB entre 1852-59, chegou aos 75 por cento em 1891. Os juros levavam metade das receitas (hoje o valor da dívida é da ordem dos 90 por cento do PIB, mas os encargos pesam 14 por cento nas receitas do Estado) . Por outro lado, a educação e assistência levavam só três por cento do PIB, isto é, seis vezes menos do que os gastos militares e pouco mais do dobro da dotação da família real.
Recorria-se à dívida e prometia-se maior rigor, prosperidade. Nada se verificou. Sucederam-se as crises financeiras. Foi em 1857, 1866, 1873, 1876. Nalguns casos, com ruptura da banca. A economia sofria deflações contínuas para recuperar o equilíbrio. Subiam as taxas de juro e apertava-se nas contas públicas. Era sempre a receita.
Finalmente, veio a grande crise do século, só saldada em 1902. Nesse ano de 1891, a par dos problemas políticos, tudo se tornou um problema. O banco londrino Baring Brothers - que colocava a divida pública de países nos mercados francês e inglês - abanou com a insolvência da Argentina e Uruguai. Gerou-se o pânico internacional e os mercados fecharam-se. Em Portugal, a solução foi mais uma vez austeridade. Tornam-se patentes as más aplicações da banca (Joel Serrão). Em Maio, dá-se uma corrida aos depósitos e é suspensa por 90 dias a conversão das notas de banco.
A economia deprime-se, só atenuada pelo proteccionismo da pauta aduaneira. Mas também pelo recurso ao banco emissor e à controversa receita extraordinária de conceder o contrato dos tabacos ao conde de Burnay, por três milhões de libras.
"Mas em 1891, quando é declarada a bancarrota parcial, não era a única alternativa", lembra Lains. "O modelo de financiamento do Estado liberal que era característico de alguns países mais periféricos não estava à partida condenado. Ele podia continuar". O que é que aconteceu?
Pedro Lains interpreta que esse modelo de empobrecimento da economia se tornou "demasiadamente oneroso". Afectava as camadas de menores rendimentos, que "começaram a ganhar voz" nas forças republicanas. Em 1891, "quando o Governo declara a bancarrota parcial, o que efectivamente estava a dizer era que se pretendia acabar com esse tipo de financiamento e passar a outro". Portugal sai do padrão-ouro, reescalona a dívida externa e passa a financiar-se através de recursos internos, pela emissão de moeda. "Foi uma opção política clara", conclui Lains. A alteração resultou. Mas também porque a economia internacional cresceu e absorveu a inflação. "A solução foi boa, no momento certo", sorri Lains. "Podia não ter sido".
E hoje? Hoje a opção monetarista não é popular e está impedida. "Não há uma massa de operariado como havia antes", já não influencia, acha Lains. E o debate político está ao nível de 1891: os bons e os maus. "A oposição a dizer que o Governo levará o país ao abismo". O "abismo" apenas terminou no Estado Novo. Mas foram 48 anos de ditadura e de atraso nacional.