O anti-referendo
Uma coisa é certa: não há pior para os referendos do que os políticos ambiciosos. Quando anunciam referendos não tencionam convocá-los, quando os convocam não os querem ganhar e quando os ganham não sabem que fazer.
Quem escreve estas linhas é a favor de referendos a tratados da UE, como permite a Constituição, e criticou Sócrates por ter desistido do referendo ao Tratado de Lisboa. Mas, infelizmente, os dirigentes partidários não gostam em geral de aprofundar a democracia, a não ser de forma instrumental, seja dentro ou fora de portas.
O exemplo mais recente é o do referendo anunciado por Catarina Martins na Convenção do BE deste fim-de-semana. Do ponto de vista tático, faz todo o sentido: se houver sanções de Bruxelas, o BE lança um referendo que outros chumbarão; se não houver sanções, o BE é capaz de alegar que Bruxelas ganhou medo das suas ameaças. Em 24 horas Catarina Martins inverteu a sua posição (no dia anterior tinha dito que não era "momento de os países jogarem cartadas de referendo"), contentou os que no seu partido acham que estão do lado certo da história (acham sempre) e encontrou uma forma de marcar a agenda mediática.
Só deixou três problemas. Em primeiro lugar, não avisou ninguém na maioria parlamentar, largando a bomba em cima de PS e PCP, que felizmente tiveram a calma requerida para não a deixar deflagrar. Em segundo lugar, não disse qual a pergunta que queria fazer aos portugueses. Em terceiro lugar, e pior ainda; não disse que resposta daria ela própria à pergunta. São as mesmas táticas que deram um maravilhoso resultado em Inglaterra.
Após dois ou três dias de críticas, contudo, o BE retomou a forma e parece ter explicado que o referendo exigido era afinal, o mesmo de que o BE fala há anos: um referendo ao Tratado Orçamental.
Ora, o BE sabe bem que um referendo ao Tratado Orçamental não é compatível com a Constituição porque: 1) a Constituição só permite referendos a tratados da União Europeia e o Tratado Orçamental não é da UE (repito: não é da UE); 2) a Constituição não permite referendos a matérias orçamentais; e 3) o Tratado Orçamental já foi ratificado. Se o BE quiser desligar Portugal do Tratado Orçamental, pode facilmente propor essa votação na Assembleia da República e confrontar cada partido com a sua responsabilidade. Não o faz porque sabe bem que deixou cair essa exigência nas negociações com o PS e que apoia um governo que se comprometeu a cumprir o Tratado Orçamental. O pseudo-referendo proposto é apenas uma forma de disfarçar uma cedência pela qual o BE não deixaria de atacar outros sem piedade.
Não é um pormenor que um partido proponha há dois anos um referendo que sabe ter hipóteses diminutas de passar no Tribunal Constitucional (além de o atual Presidente da República, enquanto professor de Direito, já se ter pronunciado pela sua inconstitucionalidade). Não é um pormenor, infelizmente, que nenhum jornalista pergunte pela inconstitucionalidade do referendo proposto. Mas não é certamente um pormenor que um partido gingue entre referendos, não-referendos e pseudo-referendos como um carrinho de compras com uma roda encravada.
Com amigos destes, o referendo não precisa de inimigos.