Donald Trump, com e sem populismo
Não sabemos se Donald Trump será eleito, ainda que algumas previsões com metodologias sofisticadas lhe dêem uma vitória confortável.
Walt Whitman espantou-se logo no inicio do século XX com a “infindável audácia dos eleitos” e esta, ainda que ironizada pelo grande poeta norte-americano, não era necessariamente má. Sublinhava apenas, por outras palavras, o que milhares de estudos de ciência política ilustram: a distância entre os valores do eleitorado e os dos que os representam é por vezes grande e as instituições estão lá muitas vezes para decidir à revelia ou mesmo contra a opinião da maioria, o que, reconheçamos, está na base das democracias representativas. As elites contam mesmo e têm um poder a não subestimar.
Apesar de algum primarismo elitista estar na base de muitas opiniões alarmistas cada vez que um Donald Trump (ou dezenas de outras versões do mesmo) diz aquelas alarvidades, a verdade é que este moralismo, ainda que legitimo, remete para uma visão das nossas democracias que está longe do que observamos quando estudamos o seu funcionamento. Robert Dahl, um dos pais fundadores da ciência política contemporânea, escreveu em 1956, no seu Um Prefácio à Teoria Democrática, uma declaração desagradável sobre o tema: “Nós esperamos que as eleições revelem a 'vontade' ou as preferências da maioria sobre um grupo de questões. Ora isto é algo que as eleições raramente fazem (...)”. Entre decisões da elite política, campanhas eleitorais e atitudes da sociedade, a relação é mais complexa.
Não sabemos se Donald Trump será eleito, ainda que algumas previsões com metodologias sofisticadas lhe dêem uma vitória confortável. Vamos ver, mas o facto de ter despertado e mobilizado um segmento considerável da sociedade norte-americana contra a sua bem elitista classe política e quase ter tomado de assalto o Partido Republicano, é um fenómeno político interessante, sobretudo porque Hilary Clinton representa o bode expiatório ideal do discurso populista. Ou seja, do lado do establishment temos um alvo fácil, o que pode ser fatal para a candidata democrática, que bem precisa do pleno dos eleitores de Sanders. Alguns também gostariam que este senador do Vermont equivalesse na esquerda democrática o que Trump é à direita, mas enganam-se. Como bem observaram dois académicos de Nova Iorque, Federico Finchelstein e Pablo Piccato, Sanders quis “politizar a desigualdade” e Trump a “antipolítica”, o que não é exatamente a mesma coisa.
Trump têm sido caracterizado como populista, um termo que tem dado para quase tudo, ou mesmo de fascista, que também já deu para tudo, mas serve hoje de pouco. Obama preferiu recentemente “xenófobo” a populista, mas não chega. Stritu senso o populismo de Trump aproxima a sociedade americana de muitas outras, nomeadamente europeias, em duas coisas, pelo menos: a maior expressão do populismo à direita do que à esquerda e ainda a desconfiança e mesmo o ódio à classe política que ocupa as instituições representativas.
Quando fui para a Universidade de Stanford ainda como estudante de doutoramento, em 1988, recebia invariavelmente a mesma resposta quando a propósito de qualquer tema de política comparada, eu perguntava algo sobre os Estados Unidos: “Mas... isso é outra coisa”. Se o fenómeno Trump tiver continuidade talvez já não me repitam a frase, pois este é hoje uma versão mais consistente de um fenómeno transversal a muitas democracias. Mas mais interessante é verificar que o populismo está hoje mais presente na direita do que na esquerda. Todos os estudos apontam para que os apoiantes de Clinton e de Trump representam um contraste assinalável de atitudes na sociedade norte-americana. Onde uns não se assustam com os imigrantes, outros sim, onde uns vêem teorias da conspiração (e mesmo o diabo) em tudo, outros não; onde uns vêem o seu futuro financeiro com algum optimismo, outros não. A novidade não é grande, mas ter apanhado facilmente o Partido Republicano é mais preocupante, ainda que seja de difícil consolidação.
Simplificando: um bela parte do “povo” anda sem rumo, nem enquadramento respeitável, e não quer nada com os mais esclarecidos, sejam eles liberais de esquerda ou de direita, e, sobretudo, com os sociais democratas. Um bom “empresário político”, como se revelou Donald Trump, tem assim campo aberto para o levantar do chão em certas conjunturas. Se o homem da torre de Nova Iorque ganhar, voltar a apanhá-lo não vai ser fácil. Se ele perder pode ser que este regresse ao chão, mas pelo sim pelo não, convém que as democracias tenham instituições legitimas a funcionar. De preferência bem.
Investigador Coordenador do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa; entre 1988 e 1996 viveu alguns anos na Califórnia e em Princeton