Fotogaleria
Assim se (sobre)vive no leste da Ucrânia, a “boca do inferno” russo
No final de Janeiro de 2024, Mikkel Hørlyck visitou a zona leste da Ucrânia, a mais afectada pela guerra. As suas fotografias descrevem o quotidiano difícil de Kharkiv e da região de Donetsk.
Todos os dias são dias de guerra na Ucrânia. É assim desde Fevereiro de 2014, o mês em que a Rússia anexou a Crimeira e passou, alegadamente, a apoiar grupos separatistas pró-russos no interior da Ucrânia, compostos por ucranianos e russos, nas regiões de Donetsk e Lugansk. Em Fevereiro de 2022, oito anos depois, a Rússia lança uma ofensiva de grande escala no país vizinho, ameaçando a sua soberania, e o conflito estende-se a todo o território.
Foi no cenário de guerra em grande escala, na fustigada região leste da Ucrânia, que o fotógrafo dinamarquês Mikkel Hørlyck mergulhou no convulso quotidiano do país invadido. Chegou a 22 de Janeiro desde ano a Kharkiv (Carcóvia), a 40 quilómetros da fronteira com a Rússia, com o objectivo de fotografar os edifícios atingidos pela artilharia e mísseis russos. "No dia seguinte, subitamente, recebi a notícia de tinha havido novos ataques na cidade e decidi deslocar-me até aos locais atingidos."
As imagens captadas por Hørlyck descrevem o caos e a destruição, material e humana, que resultou do ataque russo. Espessas nuvens de pó envolvem os edifícios atingidos. Não se trata de edifícios de Estado ou alvos militares, mas sim de prédios de habitação, onde vivem famílias ucranianas – este tipo de ofensiva pode configurar crime de guerra. "Soubemos nessa manhã que um civil ucraniano tinha morrido e que vários tinham ficado feridos", lamenta o dinamarquês, numa entrevista ao P3. Numa das imagens que captou é visível uma das vítimas com ferimentos muito graves. "Os profissionais que estavam no local a dar resposta ao ataque foram de uma prontidão impressionante", comenta. "Assim que foi possível, deram início às buscas por sobreviventes, afastando o que sobrava do edifício."
Mikkel não documentou apenas esse terrível incidente. Percorreu, também outras vilas e aldeias da região de Donetsk, onde acompanhou a acção da organização Médicos Sem Fronteiras (MSF) no apoio à população e documentou uma operação de um grupo de soldados ucranianos no terreno. "É muito perigoso estar naquela região, sobretudo na proximidade das frentes de guerra, porque os bombardeamentos russos atingem edifícios residenciais com frequência", evidencia o fotógrafo.
Antes da invasão russa, em 2022, viviam em Yampil, a aldeia onde MSF presta apoio médico, cerca de 800 pessoas. Actualmente, o número de habitantes ronda os 350 e a média de idades aumentou significativamente. "As pessoas em Yampil estão deprimidas com a guerra", lê-se numa das legendas do conjunto de imagens que Hørlyck intitulou de Hell's Mouth (boca do inferno, em português). "De acordo com a directora de serviço da MSF, os mais velhos choram de cada vez que, numa conversa, os traumas de guerra são abordados."
Para o dinamarquês, "olhar as pessoas idosas nos olhos" foi uma experiência muito especial. "Pude ver e sentir o quanto já aguentaram e experienciaram e quão inteligentes são." A maioria dos idosos que são atendidos pela MSF, em instalações sem electricidade ou rede de telemóvel, sofrem de pressão alta, condição associada pelos médicos ao stress provocado pela guerra. "Naquela zona, os sons de guerra estão sempre presentes, uma vez que Lyman e Yampil estão a poucos quilómetros de uma das linhas da frente." As duas aldeias foram "perdidas" para a Rússia e reconquistadas pela defesa ucraniana, o que significa que todos os habitantes com quem Hørlyck contactou viveram, efectivamente, sob ocupação russa. "Fiquei profundamente impressionado com a sua força e vontade de superação."
Ao longo da estrada florestal que liga Yampil a uma outra aldeia, Dibrova, saltam à vista as marcas da guerra sobre a vegetação. "Junto às frentes de guerra é normal ver-se florestas devastadas", observa o dinamarquês. Vasyl, 67 anos, é um dos utentes da MSF. Vive em Dibrova com a esposa numa casa literalmente esburacada por estilhaços de artilharia russa. Na aldeia vivem hoje apenas cerca de 70 pessoas, a maioria idosos. "Vasyl teve sorte porque a sua casa ainda está de pé", lê-se na legenda que acompanha o seu retrato. De pé, sim, mas em que condições?
Desde o início da invasão russa da Ucrânia, em Fevereiro de 2022, as infra-estruturas energéticas e de fornecimento de água sofreram danos significativos. O acesso da população a electricidade, água, aquecimento, serviços de saúde, de educação e de protecção social está severamente comprometido. Muitos ucranianos vivem em edifícios danificados enfrentando temperaturas geladas. "Foi a resiliência, a esperança e a força das pessoas" que mais impressionou o fotógrafo ao longo da sua estadia. "A lealdade dos ucranianos para com o seu país é o seu ponto forte. Eles irão combater pelo seu país até ao fim."
A ONU estima que mais de 10 mil civis já tenham morrido na Ucrânia devido à guerra. A Agência da ONU para os Refugiados estima que 14.6 milhões de pessoas precisem de ajuda humanitária, em 2024, na Ucrânia.