Fotografia
Ucrânia: o retrato da vida em suspenso de quem já não tem para onde regressar
Durante sete meses, o fotógrafo Igor Chekachkov fez o retrato do quotidiano de quem fugiu da guerra, entre o caos, e se refugiou a oeste, em Lviv. "Quis mostrar a guerra a partir de um ângulo invulgar, revelar que as pessoas continuam a seguir com as suas vidas, mesmo que de uma forma muito diferente."
Há dez anos, quando o ucraniano Igor Chekachkov fotografou a série Daily Lives (publicada no P3 em 2015), centrada na partilha de espaços domésticos e na questão da privacidade, não imaginava que abriria um novo capítulo em 2022, desta feita em contexto de guerra, como refugiado entre refugiados, em abrigos improvisados e, esperava-se, provisórios. Mas o que parecia impensável aconteceu.
Quando a Rússia invadiu a Ucrânia, a 24 de Fevereiro de 2022, o fotógrafo ucraniano viu-se forçado a abandonar a sua cidade natal, junto à fronteira com o país agressor. Partiu, num comboio a rebentar pelas costuras, de Kharkiv em direcção a Lviv, a oeste, lugar onde o nível de agressão russa seria, previsivelmente, de menor frequência e intensidade. O primeiro bombardeamento a ocorrer em Lviv aconteceu a 18 de Abril, deixando a todos a certeza de que não estariam seguros.
Integrando uma enorme torrente de refugiados que rumou a leste nas primeiras semanas de conflito (cerca de 200 mil), Igor encontrou, à chegada, refúgio na casa de cinco assoalhadas de um amigo que chegou a albergar 30 outros deslocados, em simultâneo. A solução foi temporária e as mudanças de casa tornaram-se frequentes.
Mais cedo do que tarde, Igor foi-se deparando com quem se encontrava numa situação ainda mais precária que a sua. Num antigo dormitório abandonado, em condições de sobrelotação, encontrou um grupo de mais de 200 refugiados, homens, mulheres e crianças, cujos futuros eram, à altura, quase tão incertos quanto o seu. Foi nesse edifício que fotografou e documentou parte substancial do projecto Daily Lives of the Displaced, dando voz e rosto a quem é, para muitos, apenas um dado estatístico. "Aquele não era um bom lugar para viver", comenta.
“Conheci, nesse dormitório, um casal com sete filhos que vinha de Lysychansk, Oblast de Luhansk”, recorda Igor, em entrevista ao P3, a partir de Londres, a cidade que o acolheu em Setembro de 2022, após o Governo britânico lhe ter atribuído uma bolsa de estudo à qual se havia candidatado em 2021. “Era muito perigoso para eles permanecerem na sua casa e por isso mudaram-se para Lviv.” A família de nove vivia, nos primeiros meses após a invasão, num só quarto do dormitório. “Conheci-os em Março e no final de Maio a matriarca mostrou-me uma fotografia actual, enviada por vizinhos, da casa onde viviam. Estava completamente destruída. Já não tinham para onde voltar.”
Entre o início do conflito e a altura em que Igor abandonou o país nunca parou de fotografar. Foi visitando cada vez mais casas, conhecendo cada vez mais pessoas deslocadas, mais formas de viver e de reagir a um período tão extraordinário e conturbado das suas vidas. “Durante os primeiros meses, foi muito estranho”, recorda. “Ninguém sabia quanto tempo a guerra iria durar, o que iria acontecer. Onde viver? Foi uma experiência muito estranha.”
Na opinião de Chekachkov, a fotografia documental assume, em contexto de guerra, uma dimensão diferente e não menos importante da que é veiculada pelo fotojornalismo. “A guerra não se resume a imagens de militares em acção ou de refugiados em massa nas estações de comboio. Eu quis mostrar a guerra de um ângulo invulgar, revelar que as pessoas continuam a seguir com as suas vidas, mesmo que de uma forma muito diferente.” As que conseguem escapar com vida aos efeitos destruidores de um conflito armado não têm outra opção senão procurar um novo rumo.
Há, nas imagens de Chekachkov, o retrato de quem tenha perdido todos os membros da família num bombardeamento, de quem aguarde pela emissão de documentos para poder abandonar o país ou receber tratamentos médicos no exterior. Há retratos de emigrantes que visitavam a Ucrânia, na esperança de ficar apenas alguns dias, e que ficaram presos ao abrigo da lei marcial; quem tenha, por fim, conseguido emigrar sem saber se algum dia tornará a ver o pai, o marido ou o irmão. As fotografias de Igor não exprimem perigo iminente, emoções fortes; retratam até, por vezes, o tédio de quem espera sem propósito, impedido por forças alheias de delinear o próprio futuro.
“Acho que a [pandemia de] covid-19 nos preparou um pouco para tudo o que aconteceu”, reflecte o fotógrafo. “Sobretudo porque também nos arruinou os planos. Mas desta vez foi tudo ainda mais surreal porque tudo se deve à estupidez e crueldade humana. A covid-19 era uma ameaça que não sabíamos como deter; neste caso, é possível deter as pessoas e as decisões que tomam, é possível travar aqueles que preferem continuar a matar pessoas inocentes.”
Muitos dos seus amigos, conta, artistas e músicos, permaneceram em Kharkiv e tornaram-se voluntários. “Eles ajudam os militares e os civis a ultrapassar este pesadelo.” Ou soldados. Chekachkov não pode deixar de sentir tristeza e culpa ao abandonar o país em direcção a porto seguro, Inglaterra.
Antes de partir, visitou novamente Kharkiv, a cidade onde nasceu e cresceu. “Foi muito deprimente caminhar pelas ruas que eu conhecia tão bem e recordar como estavam sempre cheias de gente e agora estavam vazias. Todos os edifícios que faziam parte da minha vida estão destruídos, está tudo diferente. Foi muito triste de ver. Não imagino como será reencontrar as pessoas depois da guerra, pensar em quem se tornarão.”
As diferenças nas pessoas que reencontrou já eram evidentes, quase sete meses após o início da guerra. “Encontrei um dos meus amigos, que é músico e actor, que tinha um longo cabelo comprido, e não o reconheci. Tinha rapado o cabelo e mudado de casa para poder estar sozinho, longe da mulher. Fê-lo devido ao stress.” A maioria das pessoas que reencontrou, crê, “mudaram completamente apenas por não poderem fazer nada daquilo que gostam e que, antes, as definia”.
Igor recorda um outro exemplo. “Um dos meus amigos, que é actor em Kharkiv, tinha feito o papel de um sniper num filme, antes da guerra. Não antes da guerra, propriamente, porque ela já existe há muito tempo, em Donbass. Mas antes da guerra em grande escala. Quando a Rússia invadiu a Ucrânia, ele alistou-se no exército com a intenção de se tornar num sniper. E faz sentido, porque ele recebeu formação militar específica para poder interpretar esse papel.” À semelhança de Zelenzky, que interpretou o papel de Presidente da Ucrânia numa série de ficção e se tornou, efectivamente, o líder do país, “o tipo que fazia de sniper num filme tornou-se num sniper da vida real”. “Uma loucura. Muitos amigos que tenho, dos mais diversos contextos, tornaram-se soldados.”
Igor sente que também ele, hoje com 33 anos, mudou bastante com a experiência da guerra. “A minha identidade está muito alicerçada em Kharkiv, uma cidade que agora está quase destruída. Por exemplo, eu falava russo antes da guerra, porque no leste da Ucrânia se fala russo; agora já não falo. Só falo ucraniano. E acho que vou compreender melhor daqui a alguns anos como mudei e em quem me tornei.”
Em 2021, Igor Chekachkov era professor na Faculdade de Arquitectura de Kharkiv; hoje é estudante de fotografia de Goldsmith, da Universidade de Londres. O seu trabalho já foi publicado no The Guardian, no Le Monde, nas revistas Forbes e National Geographic, entre outros, e já foi exibido em Paris, Nova Iorque, Los Angeles e noutras cidades por todo o mundo.