Alterações climáticas
“O carvão não é coisa do passado”: o peso pesado da indústria do carvão na Europa
Ao longo de um ano, o fotógrafo britânico Dan Wilton visitou nove países europeus, entre os quais Portugal, no sentido de compreender efeitos da indústria do carvão. O projecto The Very Fire They Sit Beside semeia a discussão sobre os impactos e desafios do abandono do carvão enquanto fonte energética para as economias, as sociedades e para o planeta.
O encerramento das centrais termoeléctricas de Sines (no distrito de Setúbal) e do Pego (no distrito de Abrantes), em 2021, transformou Portugal no quarto país da União Europeia a abandonar totalmente o uso de carvão na produção de energia eléctrica — nove anos antes do compromisso assumido por Portugal diante dos pares da UE e 29 anos antes da data-limite de 2050 acordada pelos Estados-membros no âmbito do Pacto Ecológico Europeu. Em 2020, a energia produzida por estas centrais portuguesas supria, de acordo com relatório da Agência Internacional de Energia (AIE), 6% das necessidades energéticas do país.
A convite da organização ambientalista não-governamental ClientEarth, o fotógrafo britânico Dan Wilton visitou Portugal, em 2019, aquando do desenvolvimento do projecto The Very Fire They Sit Beside, que documenta os efeitos da indústria do carvão nas paisagens e comunidades de nove países europeus – Espanha, Inglaterra, Alemanha, República Checa, Grécia, Polónia, Sérvia e Bulgária. Referindo-se à fotografia que realizou em Sines, que descreve um dia de Verão junto à central de transformação em funcionamento, Dan Wilton observa que “tem sido interessante perceber como o significado da imagem mudou ao longo do tempo”. Em entrevista, recorda que “Sines foi uma das centrais mais poluentes da Europa”. Se inicialmente considerava a fotografia simplesmente “cativante”, hoje apelida-a de “a mais esperançosa” de toda a série. Afinal, a unidade de transformação encerrou mais de 10 anos antes do previsto.
A viagem do fotógrafo é demorada, assim como o seu olhar sobre o tema. “Acho que muitas pessoas imaginam que o carvão pertence a uma era ultrapassada na Europa. Eu sei que eu pensava assim.” Os factos, porém, colocam o carvão em força no presente. “Sempre pensei que a Alemanha fosse uma líder verde na Europa”, nota. “Não fazia ideia que apenas a meia hora de carro de Colónia estão algumas das maiores minas de lignito do mundo, rodeadas por um anel de centrais de transformação termoeléctrica que dão forma a um dos pontos de maior emissão de carbono da Europa.” Em 2020, a Alemanha dependia do carvão para suprir quase 23% das suas exigentes necessidades energéticas — e pouco mudou desde então. Estima-se que essa dependência possa mesmo vir a agravar-se com a eclosão da guerra na Ucrânia. “Acho isso estonteante”, exclama.
Durante o seu périplo pela Alemanha, Dan conheceu a antiga aldeia de Manhein, na Renânia do Norte-Vestefália, que foi evacuada nos anos 40 e 50 para permitir o alargamento das minas de carvão vizinhas. “Manheim só existe nas memórias dos seus antigos habitantes”, pode ler-se numa das legendas de uma fotografia do projecto. Actualmente, à semelhança de outras no país, Manhein é uma vila-fantasma. “Este é um problema pouco conhecido, mas comum no que toca a minas a céu aberto por toda a Europa. As minas devoram as paisagens e as autoridades são forçadas a realojar as populações para abrir caminho.”
Na Grécia, são poucos aqueles que ainda permanecem na vila nortenha de Anargyroi, cerca de 150 quilómetros a oeste de Salónica. Parte de Anargyroi ficou destruída aquando de uma forte derrocada da mina de Amyntaio, em 2017. “A maioria dos habitantes perdeu as suas casas, as pessoas não puderam regressar”, descreve Wilton. “As habitações que restaram ainda têm marcas do dia do colapso — fendas nas paredes, no chão. Os residentes pedem, há muito, compensação pelos danos.” Sem sucesso. O encerramento da mina de Amyntaio está previsto para final de 2023 — o de todas as minas de carvão da Grécia tem data fixada em 2025.
As consequências da utilização do carvão enquanto fonte de energia são nefandas para o meio ambiente e a saúde pública. “Visitei uma cidade em Espanha onde o solo registava níveis de mercúrio sete a dez vezes superiores àqueles que são permitidos pela Organização Mundial de Saúde”, narra Wilton. “As pessoas continuam a plantar nesses solos, apesar dos depósitos de metais pesados que contaminam as águas da região.” Na Bulgária, o fotógrafo deparou-se com parques infantis cobertos por uma fina camada de pó tóxico proveniente de uma central termoeléctrica.
Em 2017, refere Dan Wilton, existiam 320 centrais de transformação de carvão em energia. “Agora, mais de metade dessas estruturas está encerrada ou já tem data marcada para o encerramento.” A Polónia, o maior produtor de energia a partir do carvão da UE, é o único Estado-membro que não avançou ainda uma data para o término.
Mas quais os vectores que influenciam o corte com o carvão? A dependência fóssil, com ou sem a presença do carvão, é transversal a todos os países da UE. Todos, com excepção da Suécia e Dinamarca (exportadora de petróleo), que dependem de energias verdes, dependem sobretudo do petróleo e do gás natural para suprir as suas necessidades energéticas. Em Portugal, por exemplo, de acordo com dados de 2021 da AIE, 76% da energia consumida em 2019 foi proveniente da combustão de petróleo (43%) e de gás natural (24%), bens integralmente importados. As energias eólica e hidroeléctrica supriram apenas 5,5% e 3,5%, respectivamente, das necessidades energéticas do país – valores manifestamente insuficientes, apesar de Portugal ter nota positiva no que toca à introdução de renováveis.
Para Portugal, abandonar o carvão teve um impacto relativamente baixo, tendo em conta que este representava apenas 6% no bolo energético. A Alemanha, que tem uma necessidade de consumo energético 14 vezes superior a Portugal, enfrenta um desafio diferente: o abandono do carvão tem e terá um impacto profundo na sua economia. Tornar obsoletas as infra-estruturas associadas ao carvão e substituir a fonte de 23% da energia no país sem recorrer a mais matéria-prima fóssil é o dilema que enfrenta sob o olhar atento da UE e do mundo. No presente cenário geopolítico, tendo em conta que a Rússia era um dos seus principais fornecedores de gás natural, esse desafio tornar-se-á ainda mais exigente.
Os custos para a saúde humana são, independentemente do impacto económico, bastante elevados. Na Alemanha, a toxicidade do ar em torno das centrais termoeléctricas de carvão está associada a quase tantas mortes como aquelas que são provocadas por acidentes de viação. Na Polónia, no entanto, onde se estima que 2500 mortes prematuras estejam associadas à proximidade de centrais termoeléctricas, dá-se o caso de o carvão se ter imiscuído no tecido cultural das populações. “Existe, na Polónia, um orgulho imenso associado à herança da mineração de carvão”, explica Wilton. Em várias cidades da região da Silésia, celebra-se anualmente a Babórka, o dia de Santa Bárbara, a padroeira dos mineiros.
Existe, assim, maior resistência da Polónia relativamente ao abandono do carvão no país. “As pessoas não têm culpa de terem crescido numa área onde a mineração era o principal empregador durante décadas”, observa. “Quem viveu e trabalhou nessa indústria tornou-se dependente dela, não se pode simplesmente encerrar tudo e seguir em frente.” Wilton acredita que é necessário pensar numa “transição justa” para essas comunidades. “Ultrapassar o carvão, sim, mas respeitar as pessoas que sacrificaram as suas vidas para produzir a energia que chega até nossas casas, garantir que têm um futuro estável.”
A exposição do projecto de Dan Wilton, fotógrafo freelancer que colabora com o The New York Times ou o The Guardian, pode ser visitada, a partir de 10 de Março, em Londres, na Huxley-Parlour Gallery. Todas as receitas de venda fotográfica serão direccionadas para o financiamento da ClientEarth. Em jeito de conclusão, “posto de forma simples”, refere o britânico, “a poluição gerada pelo carvão não respeita fronteiras. É a poluição gerada pelo carvão que mais contribui, presentemente, para as alterações climáticas. É um problema colectivo neste momento de crise climática.”