Fotografia

Eles não vêem. Mas fotografaram

Marta quer que se saiba que os cegos também dormem de olhos fechados. Graciete que é possível não ver e ser uma mestre na cozinha. José queria fotografar a vida e o pós-vida. Que imagem de si próprio e do mundo tem quem não vê? Hoje é Dia Mundial da Visão.

"Pretendo mostrar às pessoas, que muitas vezes me perguntam, se os cegos dormem de olhos abertos ou fechados. Eu fiz esta fotografia para dizer que nós dormimos de olhos fechados, como eles." Marta Jordão/MEF
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"Pretendo mostrar às pessoas, que muitas vezes me perguntam, se os cegos dormem de olhos abertos ou fechados. Eu fiz esta fotografia para dizer que nós dormimos de olhos fechados, como eles." Marta Jordão/MEF

Quando lhe perguntaram o que queria fotografar, José Sobreira não pensava noutra coisa senão numa imagem que falasse dos filhos. Perdeu-os para o cancro, o rapaz aos 34 anos, a rapariga aos 28. José ficou cego três meses depois. Foi o trauma, disseram os médicos. José Sobreira é um dos participantes do projecto Imagine Conceptuale do Movimento de Expressão Fotográfica (MEF), que nos últimos três anos trabalhou com 63 pessoas com deficiência visual, entre cegueira congénita, adquirida ou baixa visão. “A ideia era levar a produção artística, o contacto com a arte e a aprendizagem sobre alguns movimentos estéticos relevantes a um grupo de pessoas com maior dificuldade no acesso às imagens”, explica Luís Rocha, um dos fundadores do MEF. Nem todos os participantes traduziram nas suas imagens as influências dos movimentos artísticos a que foram expostos, sobretudo os mais velhos. Mas no horizonte esteve sempre algo que faz já parte da identidade do MEF: “Facilitar o acesso destas pessoas às artes visuais e fomentar as suas formas de expressão pessoal e artística, em particular por meio da fotografia. O objectivo maior era a inclusão.”

Após as sessões sobre história de arte, os participantes discutiram em conjunto o que gostariam de representar em fotografia. Quereriam falar de si, dos outros? Fixar um auto-retrato, ilustrar o mundo? “Tentámos que o tema não fosse só a cegueira, mas a também a liberdade, a amizade ou os sonhos”, explica Luís Rocha. José Sobreira, 62 anos, estava determinado a fotografar “a vida e o pós vida”. E por isso ao lado da reprodução fotográfica de fotografias do rosto de cada um dos filhos está um objecto que ficou desse depois: a cadeira de rodas do filho, a trança de cabelo da filha.

Todas as fotografias do projecto estão agora reunidas na exposição Ver com Outros Olhos, na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa. A acompanhar cada fotografia está um pequeno texto, escrito na primeira pessoa pelos participantes-fotógrafos. Coube-lhes a eles fotografar, na maioria das vezes recorrendo a um comando remoto, que escondiam na mão. A câmara estava à sua frente, num tripé. Recebiam indicações de posição em relação à luz, por exemplo, mas o processo queria-se o mais autónomo possível. Alberto Biom, guineense, queria fotografar a casa com que sempre sonhou na Guiné, uma viagem que não foi possível fazer. Acabou por construir uma estrutura de uma casa em madeira. E disparou. "Eu pensava que não conseguia tirar uma fotografia eu mesmo (sic). Saiu muito bem, não foi?" 

É no documentário que encerra a exposição, da autoria de Luís Rocha e Tânia Araújo (fundadores do MEF e coordenadores do projecto) que temos acesso ao processo de realização das fotografias. É assim que ouvimos e vemos Alberto Biom, surpreendido com as suas competências de fotógrafo. Ou que vemos a jovem Marta Jordão a alinhar com precisão fardos de palha que construíram uma cama onde se deitou a dormir: de olhos fechados. Ou que vemos Nuno Silveira a colocar metade de uma abóbora pintada de azul na cabeça. E ouvimo-lo: “Tinha medo de ir à casa de banho porque aparecia uma abóbora a tentar entrar pela janela”. Foi isso que quis representar. No caminho, descobriu que um cego também pode criar imagens: “Toda a gente tem uma visão. E as pessoas com deficiência visual não são excepção. Também têm uma visão do mundo”, explica no documentário.

“Eles não disparam ao acaso”, assegura-nos Luís Rocha. “A imagem pode não ser visível mas é construída, com memórias, sensações, impressões”, diz. José Soudo, fotógrafo e professor de História da Fotografia, explica no documentário um pouco mais: “Há um sentir que é mais que o visual. Nós vemos e depois interpretamos. Eles interpretam para depois sentirem. Sentirem, verem.” Cada fotografia da exposição é ainda acompanhada de uma imagem táctil, em alto-relevo: uma tradução da fotografia original para poder ser vista por deficientes visuais. Para que o invisível se torne visível. As duas versões vão ser publicadas em livro no final de Outubro.

O Movimento de Expressão Fotográfica (MEF) trabalha há quase 15 anos com a comunidade cega ou com baixa visão. No passado optaram por criar exposições de fotografia recriando um ambiente de escuridão, para que os normovisuais se sentissem na pele de quem não vê. “Esta é a primeira exposição com sensores tácteis nas fotografias”, explica Luís Rocha. “Pensámos o resultado final que incluísse ambos, cegos e normovisuais, porque os cegos não vivem num mundo de cegos, vivem num mundo normovisual.” Tânia Araújo explica que é também o projecto mais completo que realizaram até hoje, decorrente do financiamento e acompanhamento que tiveram do programa PARTIS  – Práticas Artísticas para a Inclusão Social, da Fundação Calouste Gulbenkian. “Foi fundamental pela estrutura de aprendizagem, funcionou quase como um laboratório”, explica. E ajudou, afirma, a que a experiência fosse valorizada por quem participa. “Expor na Gulbenkian é a confirmação de valor para pessoas para quem a sociedade foi muitas vezes injusta”.

“As portas estão fechadas, mas eu entro”

Quando o professor Fernando Matos viu o anúncio da exposição Ver com Outros Olhos nas redes sociais pensou: “ Bingo, não podia ter vindo em melhor altura”. A turma de 10º ano do curso de fotografia da Escola Profissional Magestil, em Lisboa, tinha acabado de receber Mariana Neto, uma aluna amblíope. Por enquanto, Mariana, 16 anos, fotografa com o telemóvel, mas a escola está a tentar adaptar uma máquina fotográfica profissional para que inclua um monitor que permita a Mariana ampliar as imagens. Na exposição, Mariana descobriu outros fotógrafos como ela. Durante a visita, alguns colegas explicaram-lhe detalhes das imagens e fotografaram as zonas mais escuras para que Mariana pudesse ver mais de perto.

Os médicos não conseguem determinar ao certo o quanto a Mariana consegue ou não ver. Um quisto no cerebelo (detectado na recta final da gravidez) afecta-lhe a visão e a motricidade. “Felizmente a zona cognitiva nobre do cérebro está preservada”, explica ao PÚBLICO a mãe, Sofia Neto. “Ela tem fibras ópticas mortas. Todo o processo visual se faz de uma forma muito lenta, a partir do momento em que ela vê até o cérebro processar a informação. Em determinados ângulos não vê e não tem visão periférica de todo. Mas também não vê apenas formas e contornos, vê objectos, define-os e consegue identificá-los”, esclarece Sofia Neto.

Fotografia partilhada por Mariana Neto no Instagram
Fotografia da sombra de Mariana no Instagram Mariana Neto

Para a mãe, designer gráfica, ex-docente e artista plástica, o que Mariana não vê pode até ser uma vantagem: “A baixa visão da Mariana pode potenciar outras capacidades. Acho que a sensibilidade particular dela pode estar expressa na fotografia”, diz. Mariana gosta sobretudo de fotografar candeeiros e sombras. “No outro dia fui ao Jardim do Campo Grande e fui eu que vi a minha sombra no chão, e quis fotografar”, conta ao PÚBLICO. O telemóvel já estava na mão, pronto para nos mostrar a sua conta de Instagram, que abriu há um ano. “Esta é uma selfie com o meu pai. Fomos ao jogo do Benfica e eu quis tirar uma foto ao estádio”, diz-nos.

O pai ofereceu-se para tirar a fotografia. “Eu disse: ‘sou eu que estou a tirar o curso de fotografia, se quiseres podes ajudar!’” Concluída a formação em fotografia, diz, vai fazer um curso de DJ. “A Mariana surpreende sempre”, diz ao PÚBLICO Carla Fragata, coordenadora do curso de fotografia. E recorda o que a aluna lhe disse logo na segunda aula, quando perguntou aos alunos se tinham um lema de vida. “As portas estão fechadas, mas eu entro”, respondeu Mariana.

"O sonho de ter uma casa. Ideia que está dentro de mim até hoje."
"O sonho de ter uma casa. Ideia que está dentro de mim até hoje." Alberto Biom/MEF
"A ideia foi demonstrar aos outros que nós somos capazes de fazer. Conseguimos fazer várias coisas ao mesmo tempo. Fazemos o mesmo que os outros. Demonstrar às pessoas que vêem que nós cegos apesar das limitações, somos bastante autónomos. Somos todos iguais, todos nós temos as nossas limitações."
"A ideia foi demonstrar aos outros que nós somos capazes de fazer. Conseguimos fazer várias coisas ao mesmo tempo. Fazemos o mesmo que os outros. Demonstrar às pessoas que vêem que nós cegos apesar das limitações, somos bastante autónomos. Somos todos iguais, todos nós temos as nossas limitações." Graciete Cabecinha/MEF
"Fiquei sem palavras quando me perguntaram se eu podia cuidar do meu filho. Uma pessoa cega pode cuidar de um bebé."
"Fiquei sem palavras quando me perguntaram se eu podia cuidar do meu filho. Uma pessoa cega pode cuidar de um bebé." Andreia Varela Monteiro/MEF
"O meu trabalho tem a ver com a minha infância. Tem a ver com um medo que eu tinha e que agora quero retratar. Uma janela, alguém com uma cabeça de abóbora azul a tentar entrar pela janela. Quando era pequeno tinha medo de ir à casa de banho à noite. Quando ia à casa de banho via a janela e imaginava esta personagem."
"O meu trabalho tem a ver com a minha infância. Tem a ver com um medo que eu tinha e que agora quero retratar. Uma janela, alguém com uma cabeça de abóbora azul a tentar entrar pela janela. Quando era pequeno tinha medo de ir à casa de banho à noite. Quando ia à casa de banho via a janela e imaginava esta personagem." Nuno Silveira/MEF
"A minha fotografia é sobre um personagem que ninguém conhece, de um jogo de
computador, que jogo todos os dias. Fiz um auto-retrato de um dos meus personagens preferidos: o mineiro. Vesti roupa de trolha do meu pai, a minha mãe ajudou na fotografia. Usei no capacete uma vela, tal como a personagem. O mineiro ataca construções e aparece por baixo da terra em todo o lado."
"A minha fotografia é sobre um personagem que ninguém conhece, de um jogo de computador, que jogo todos os dias. Fiz um auto-retrato de um dos meus personagens preferidos: o mineiro. Vesti roupa de trolha do meu pai, a minha mãe ajudou na fotografia. Usei no capacete uma vela, tal como a personagem. O mineiro ataca construções e aparece por baixo da terra em todo o lado." Paulo Amorim/MEF
"Fotografar a minha cara com olhos de gato. Na brincadeira digo que quando começarem os implantes de olhos, eu quero a minha cara com olhos de gato para ver bem de dia e de noite também, para ver tudo o que já não consigo ver."
"Fotografar a minha cara com olhos de gato. Na brincadeira digo que quando começarem os implantes de olhos, eu quero a minha cara com olhos de gato para ver bem de dia e de noite também, para ver tudo o que já não consigo ver." Isabel Oliveira/MEF
"A vida sem sonhos torna-se muito pesada. A relação que tenho com a minha cadela, mudou a minha vida, deu-me liberdade."
"A vida sem sonhos torna-se muito pesada. A relação que tenho com a minha cadela, mudou a minha vida, deu-me liberdade." Marylu Gerard/MEF
"Gosto muito de água, foi isso que quis fotografar. Fotografei a água, a montanha e o céu azul."
"Gosto muito de água, foi isso que quis fotografar. Fotografei a água, a montanha e o céu azul." Fábio Azevedo/MEF
"Tinha muita energia. Eu não parava. Chegava a dançar todos os dias 3 horas por dia.
Adoro dançar. Fiquei limitada com a falta de visão. Danço tudo. No centro, à noite, como os meus colegas sabem que eu gosto de dançar, combinamos e alguns de nós dançamos. Somos poucos e mesmo que não haja ninguém para dançar, danço sozinha. Vim para o centro, para ganhar autonomia para poder ir a alguns locais para dançar. Não tenho olhos, mas tenho pernas. Desde os 14 anos que eu danço. Gostaria de imortalizar este momento, se não conseguir dançar mais. Quero provar que apesar de não ver, que ainda consigo dançar."
"Tinha muita energia. Eu não parava. Chegava a dançar todos os dias 3 horas por dia. Adoro dançar. Fiquei limitada com a falta de visão. Danço tudo. No centro, à noite, como os meus colegas sabem que eu gosto de dançar, combinamos e alguns de nós dançamos. Somos poucos e mesmo que não haja ninguém para dançar, danço sozinha. Vim para o centro, para ganhar autonomia para poder ir a alguns locais para dançar. Não tenho olhos, mas tenho pernas. Desde os 14 anos que eu danço. Gostaria de imortalizar este momento, se não conseguir dançar mais. Quero provar que apesar de não ver, que ainda consigo dançar." Maria Piedade/MEF
"Eu resolvi fazer a minha parte da fotografia em relação a uma festa de anos que eu tive aos meus 18 anos, que foi a que me marcou. Fiz numa quinta que foi ocupada durante o 25 de Abril, que eu também participei na ocupação. Marcou-me imenso este dia. Este dia foi retornar uns anos atrás com muitas memórias boas, sair da realidade em que estou a passar agora, em relação à cegueira e outras coisas mais. Este trabalho foi realizado na mesma sala onde eu fiz os meus 18 anos."
"Eu resolvi fazer a minha parte da fotografia em relação a uma festa de anos que eu tive aos meus 18 anos, que foi a que me marcou. Fiz numa quinta que foi ocupada durante o 25 de Abril, que eu também participei na ocupação. Marcou-me imenso este dia. Este dia foi retornar uns anos atrás com muitas memórias boas, sair da realidade em que estou a passar agora, em relação à cegueira e outras coisas mais. Este trabalho foi realizado na mesma sala onde eu fiz os meus 18 anos." Fátima Freitas/MEF
"Recordação do passado, porque o passado era mais bonito que o presente. Tenho saudades do passado, era uma vida mais alegre, agora é mais triste. O passado traz-me saudades. Naquela altura não tínhamos acesso a fotografias. Foi um homem de
máquina às costas, que andava na rua a tirar fotografias a torto e a direito, que me deu esta fotografia. O homem até tinha jeito para tirar fotografias."
"Recordação do passado, porque o passado era mais bonito que o presente. Tenho saudades do passado, era uma vida mais alegre, agora é mais triste. O passado traz-me saudades. Naquela altura não tínhamos acesso a fotografias. Foi um homem de máquina às costas, que andava na rua a tirar fotografias a torto e a direito, que me deu esta fotografia. O homem até tinha jeito para tirar fotografias." Ana Maria Lima/MEF
"Trabalhei no mundo da aviação. A sua viagem começa à porta do avião. A postura que tiver à porta, conta muito para o seu conforto na viagem. Daí a importância de usar o salto alto, para dar uma postura de segurança. Quando ceguei não conseguia
usar salto alto, agora aprendi a usar salto alto com a minha bengala e voltei a sentir-me novamente mulher."
"Trabalhei no mundo da aviação. A sua viagem começa à porta do avião. A postura que tiver à porta, conta muito para o seu conforto na viagem. Daí a importância de usar o salto alto, para dar uma postura de segurança. Quando ceguei não conseguia usar salto alto, agora aprendi a usar salto alto com a minha bengala e voltei a sentir-me novamente mulher." Júlia Silvestre/MEF
"Fotografar o meu passado recente. Quero fotografar a vida e pós vida. O tema é relacionado com os meus filhos. Eles viveram connosco, ela 34 anos e ele 28 anos. Gostava de fazer uma fotografia ligada a eles, na vida e na morte. "
"Fotografar o meu passado recente. Quero fotografar a vida e pós vida. O tema é relacionado com os meus filhos. Eles viveram connosco, ela 34 anos e ele 28 anos. Gostava de fazer uma fotografia ligada a eles, na vida e na morte. " José Sobreira/MEF
"Acredito na ressurreição, mas depois destas mortes, tive revolta, há Deus, não há? Coloquei tudo em causa. Perdi a visão passado 3 meses da morte dos meus filhos."
"Acredito na ressurreição, mas depois destas mortes, tive revolta, há Deus, não há? Coloquei tudo em causa. Perdi a visão passado 3 meses da morte dos meus filhos." José Sobreira/MEF
"Tenho um fascínio por água, pelo fundo do mar."
"Tenho um fascínio por água, pelo fundo do mar." Paulo Conceição/MEF