Riu de quê, doutor Centeno?
O riso de Mário Centeno prova que a subserviência de Vítor Gaspar ou de Maria Luís Albuquerque no Ecofin persiste no actual Governo.
Reparemos com cuidado nas imagens de Mário Centeno captadas pelas câmaras de televisão na última reunião dos ministros das Finanças da União Europeia, esta terça-feira. O que vemos? Um ministro a desfazer-se em sorrisos, ora simpáticos, ora bajulatórios, com os seus pares no dia em que eles se dispunham a dar luz verde a sanções a Portugal; um ministro de um país que estava prestes a ser alvo de uma injustiça a exibir um fácies digno de alguém no auge da sua glória e prestígio; um homem em representação de um país prestes a ser vexado a movimentar-se entre a galeria de notáveis como se a dignidade do seu cargo e a própria dignidade nacional fossem imunes a raspanetes dos poderosos; um titular de um cargo político a pavonear-se com o cachecol da selecção de futebol como se uma vitória numa final fosse capaz de redimir a punição absurda que estava em preparação para o país.
Sabemos que os momentos para as photo opportunity que antecedem as reuniões de ministros ou de chefes de governo da União Europeia não passam de uma encenação para mostrar ao mundo um espírito de união que nos bastidores se desfaz na má-fé ou na facada. Mas, mesmo com esta atenuante, o sorriso de Centeno e a sua expressão de felicidade soaram a nota fora de tom — porque, como o próprio assumiu no final do Ecofin, “a Europa não pode tomar decisões esquecendo que existem tensões grandes dentro da Europa que têm de ter uma resposta política”; porque, como ele bem definiu, as sanções “não tomam em devida consideração todo o esforço que Portugal fez”. São um absurdo tão grande, um erro tão dramático e um sinal tão preocupante para o presente e para o futuro que desmerecem sorrisos conformados e desaconselham cachecóis que ensaiam a sublimação da pátria numa vitória do futebol.
O riso e a expressão de felicidade de Centeno apoiam a sensação de que o Governo desertou no momento em que chegou ao campo de batalha. Nesse dia, o ministro das Finanças deveria ter adoptado um ar grave para dizer o que António Costa afirmou antes e reiterou depois a propósito do disparate das sanções. Sublinhando que a decisão é “opaca”, “juridicamente incerta”, “injustificada”, um “contra-senso”, “contraproducente”, um produto imposto por uma Europa onde Wolfgang Schäuble manda e os outros obedecem. Onde estava o ministro francês, o italiano ou o eslovaco que antes se tinham manifestado contra as sanções? Claro que, com tanta bonomia de Portugal e tanta pesporrência da Espanha, ficaram ao lado dos mais fortes. Era ali, naquele conselho de ministros, que Portugal devia ter dito e reiterado que não aceitava a punição, era ali que o Governo deveria ter recordado o relativo consenso nacional contra as sanções, era ali que se deveriam lembrar os esforços feitos no passado, era ali que deveriam ter pesado os equilíbrios precários que evitam a queda do Governo e o mergulho do país na instabilidade política.
O que esta semana aconteceu a Portugal e à Espanha é um tempo novo na Europa. Depois de dezenas de procedimentos por défice excessivo acumuladas na era da moeda única, a Comissão e o Conselho decidiram ressuscitar as punições previstas no tratado, não porque as perspectivas de estabilidade do euro sejam mais graves, não porque o desvio das metas do défice sejam intoleráveis ou porque os relatórios da execução orçamental deste ano apontem para a iminência da catástrofe. Portugal e Espanha estão na berlinda porque é preciso mostrar aos eurocépticos da União que o cavalo está de pé após o fracasso do “Brexit”. É preciso mostrar ao eleitorado alemão ou holandês ou finlandês que oscila para os extremos do sistema partidário que a tolerância em relação aos relapsos do Sul é equivalente a zero. A França vai nas 11 violações do pacto de estabilidade? A Alemanha não cumpre os limiares máximos do superavit da balança comercial? Pouco importa. Haja um “zé ninguém” para levar pancada e servir de exemplo de uma Europa atenta, funcional e cumpridora.
É expectável que, no fim do dia, as sanções não passem do simbolismo e, como aqui se escreveu, acabem numa artimanha para conservar os jogos do faz de conta com que a Europa se entretém e a vida partidária nacional tanto aprecia. O problema, porém, não é com os outros. É connosco — porque alguém, contra a opinião de meio mundo, até contra a opinião das vozes da ortodoxia financeira, decidiu sublinhar as coordenadas de Portugal nos radares da desconfiança dos mercados; porque alguém se esqueceu de que o sistema político português sobrevive em equilíbrio instável depois de quatro anos de um pesado ajustamento exigido pelos credores. O que estava em causa era mais do que uma multa de estacionamento. Era uma questão de dignidade.
O riso de Mário Centeno prova que a subserviência de Vítor Gaspar ou de Maria Luís Albuquerque no Ecofin persiste no actual Governo. Centeno não foi apanhado em diálogos feudo-vassálicos com Schäuble, mas exala satisfação aos que se preparam para lhe dar pancada. Os antecessores de Centeno agradeciam aos mestres a iluminação que eles lhes concediam e podiam rir à vontade, porque jamais diriam em público o que António Costa disse sobre o fim da austeridade. Talvez por isso, certamente por isso, Portugal foi objecto de sanções. Os disparates da baixa do IVA na restauração ou a absurda lei das 35 horas têm um preço — que devia ser cobrado ou corrigido a seu tempo, se necessário. O que a Comissão e o Ecofin fizeram foi muito mais do que isso. Foi tratar o país como a cómoda que se arruma de acordo com as conveniências. Com o ministro a rir-se.
2. Valha-nos o Partido dos Animais e Natureza (PAN) para nos propiciar risos com razão de ser. O que fazer depois de se saber que o PAN quer acabar com a circulação das carroças e das charretes na via pública? Rir. Mas, antes, uma perplexidade: o PAN prefere motores a combustão aos veículos de tracção animal. Quem ficou a pensar que com esta medida o PAN estava a excluir a mobilidade de agricultores ou das comunidades ciganas, estava enganado: o partido defende que “o Estado deverá criar um programa de incentivos que vise apoiar estes cidadãos na escolha de um veículo alternativo”.
Ora nem mais. Estão a imaginar o senhor X de Poiares a trocar o seu burrico por um Mini, o senhor Y de Ermelo a substituir o seu macho por um Audi ou a família Z a prescindir do seu cavalo em favor de um Mercedes? Bom, claro que estes veículos não lavram a terra. Mas podia haver lugar a uma troca por tractores, embora o argumento para tão grande reforma do PAN, a segurança rodoviária, caísse por terra — morrem muitos mais portugueses em acidentes com tractores do que com charretes. Tudo se resolveria a contento, desde que o Estado pagasse a conta. Às vezes fica-se com a sensação de que a política em Portugal caiu no desvario. Resta-nos rir.
A Memória Futura regressa em Agosto