Vem aí a putalhada

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No início de Julho deste ano fomos a um subúrbio chamado Casal do Chapim, em Odivelas, na cintura externa de Lisboa, para entrevistar um rapaz que acabava de lançar o seu segundo disco na Net, um rapaz que dá pelo nome artístico Cão da Morte. Quando o encontrámos, na esplanada de um centro comercial local, estava acompanhado por um amigo, um tipo largo, barbudo e cabeludo que se apresentou como Éme. O nome verdadeiro do moço era (e é) João Marcelo; Éme é uma espécie de "nom de plume", ou pelo menos o que constava do CD-R que nos entregou com as suas aventuras folk.

Mais tarde, em casa, ouvimos o CD com atenção, concluindo que poderia vir dali uma bela aventura folqueira. Foi preciso menos tempo do que supúnhamos e uma ligeira alteração estética para surgir um disco, um grande disco, com esta voz: afinal, para Marcelo, a relação com a guitarra acústica não era exclusiva; antes a mantinha em paralelo com a eléctrica, que usa no mais estranho e delicioso quinteto indie português, Os Passos Em Volta. Seis meses depois de termos ouvido Éme pela primeira vez, sai o primeiro longa-duração oficial dos Passos, "Até Morrer": canções mordidas por uma voragem eléctrica danada, meia hora de pura vertigem adolescente, três guitarras a dizer que não vão a lado nenhum enquanto não berrarem tudo o que têm para berrar.

"Até Morrer" seria um acontecimento só por si, mas o disco marca também o nascimento de uma editora, a Cafetra Records (Fetra para os amigos), feita pelos fazedores do disco e seus amigos. E como se não bastasse é a primeira aparição em longa-duração das duas meninas das Pega-Monstro, que são dois quintos dos Passos (mais dia, menos dia as Pega estarão a editar o seu primeiro álbum).

"Na Fetra, mais do que ser editora, curtimos ser um gangue", dizia-nos há uns dias João Marcelo, voz e guitarra dos Passos. Com a sua bonomia habitual (há nele qualquer coisa de urso pacato), complementa a frase anterior: "Só que não fazemos mal". Diz "mal" com um tom tão infantil que por segundos pensamos estar a conversar com uma personagem saída do Canal Panda.

Mas não, nada disso. Há cerca de mês, mês e meio, vimos os Passos no Lounge, em Lisboa, numa noite em que tocaram com os colegas de editora Kimo Ameba. Os Passos deram um concerto extraordinário: era como se convertessem o excesso de hormonas da adolescência em quantidades massivas de electricidade e tudo isso fosse ampliado pela capacidade de João Marcelo berrar. "A cena é que eu sou sempre o rapaz calmo da folk", explica Marcelo. "E em Passos tenho um espaço em que posso berrar. Berrar é fixe, sabe bem e fica bem". Tínhamos combinado a conversa para um café do Campo Pequeno, em Lisboa. Mais especificamente, "qualquer café desde que não seja o Magnólia, que é muito caro", para citar Marcelo. É preciso ver que eles são todos muito novos e ainda moram com os pais. Pedro Saraiva, que se encarrega das teclas, é o mais velho e tem 21 anos. Maria (guitarra) vai nos 18. A mana Júlia (bateria) nos 20. A mesma idade de João Dória, que também se encarrega da guitarra. (Sim, há três guitarras nos Passos Em Volta e sim, o nome da banda foi roubado ao livro de Herberto Hélder. Durante algum tempo eles ponderaram mesmo chamar ao disco "Herberto Hélder".) Marcelo, por sua vez, tem 19 anos.

Vêm todos à entrevista, o que não é de estranhar - é assim que funcionam. Cruzámo-nos com eles meia-dúzia de vezes durante o festival de Paredes de Coura e era sempre uma visão caricata: uma dúzia de Fetras mais os amigos, todos com o seu sentido estético muito peculiar, sempre com ar vagamente janadito, entretidos em piadas que só eles entendem. No concerto no Lounge a mesma coisa: eles todos aos saltos, a gritarem as letras, a fazerem festa. Acima dos 22 anos de idade devia haver mais uma ou duas pessoas. Acima dos 28, apenas quatro: Pedro Gomes e Nélson Gomes, da promotora Filho Único, que entretanto se encarregaram de lhes organizar concertos, B Fachada, que entretanto está a produzir o disco das Pega Monstro, e aqui o rico. Na prática é como se a dúzia de putos que compõe a Fetra se encarregasse de legitimar a própria música que faz, indiferente ao que os outros possam pensar.

Esse sentido de pertença é fundamental. Diz Marcelo: "Se nós não tivéssemos estes amigos todos já tínhamos dado concertos para zero pessoas e se calhar a banda já tinha acabado". Pedro Saraiva explica a que ponto chega a entrega dos membros da editora à causa: "Se Kimo e Pega tocarem no mesmo dia em sítios diferentes, metade da malta vai a um concerto a outra metade vai ao outro. Dividimo-nos tipo piquete de greve".

A cada um a sua cena

A Cafetra nasce da junção de uma data de miúdos que não são amigos de infância. A malta dos Passos Em Volta conheceu a malta dos Kimo Ameba porque um dos Kimo é primo das manas Pega-Monstro. Saraiva e Marcelo conheceram-se porque os pais de ambos "são amigos há muito anos". Pelo que um dia Marcelo perguntou a Saraiva se este queria gravar uma música que ele andava a escrever. Passamos a citar João Marcelo: "Nós os três, eu, a Mary e a Jules, vivemos na mesma ‘street'". Ele "não sabia sequer tocar guitarra" quando os Passos começaram, diz Maria. "Fui que lhe ensinei", continua. Marcelo: "Ya, só sabia fazer a barra. Mas agora toco com afinações abertas". Comentário de Maria: "Mêmo à bawss".

Mais interessante do que a conversa sobre quem ensinou o quê a quem é o uso que eles fazem da linguagem. Não deixa de ser caricato que os Passos Em Volta cantem em português mas depois, no seu discurso corrente, estejam cheios de palavras inglesas - e de um vocabulário muito próprio. Uma coisa não é aleatória; é "random". Uma coisa não é divertida; é "mil fun". Um tipo não toca à patrão; toca "à bawss". Assim a Maria é a Mary, a Júlia é a Jules e o Dória é o Nória (presumimos que seja uma piada com "nóia", no sentido de "paranóia").

Os Passos em Volta tendem a falar ao mesmo tempo e facilmente qualquer narrativa deixa de ser compreensível para quem está de fora. Por exemplo: ao contarem um pormenor relevante para a história da banda, falam da pessoa A ou B ou C (sendo A, B e C amigos deles) como se o entrevistador os conhecesse perfeitamente; obviamente, o entrevistador nunca viu A nem B nem C mais gordos.

Como acontece com todas as bandas de malta nova, a conversa passa inevitavelmente pelos tempos que passaram a ensaiar em caves e os discos que ouvem. Mas, por mais aborrecida que essa conversa pareça para o leitor comum, neste caso faz sentido: os Passos existem já há uns três aninhos e é notório que as suas canções foram trabalhadas ao limite. Das primeiras canções que compuseram só sobreviveram duas ou três. Pedro Saraiva: "Passámos um ano a ensaiar estas canções. Mudaram imenso desde então".

Esse é um dos factos incontornáveis nos Passos: sim, é rockalhada, e, sim, é rockalhada em que a cada segundo parece que os instrumentos vão falhar e a bateria cair para o lado; mas tudo aqui é preparado ao milímetro. E é, acima de tudo, muito próprio.

"Bem, a cena de não termos baixo nas nossas canções", conta Pedro Saraiva, "veio de não termos mesmo baixo. Ninguém tinha um baixo que pudéssemos tocar". Não havendo um baixo há três guitarras e teclas. Também há duas vozes, sem contar com os coros. Só nestes pequenos pormenores cria-se a identidade de um som que não encontra semelhanças em Portugal.

"Não queríamos fazer uma cena só com um riff e todos a tocar o mesmo", continua Saraiva, aquele que consegue pôr um pouco de ordem no discurso da moçada. "A ideia é cada um fazer a sua cena. Se sai bem fica na canção". Por outras palavras: os Passos trabalham com cuidado as harmonias.

Contudo - e uma boa parte da graça destes moços (espertalhões com bom coração) reside em detalhes como este - há processos de composição mais, digamos, alternativos. "Como passamos as férias em conjunto, às vezes estão dois a tocar guitarra e nasce uma canção", vai dizendo Saraiva. "E às vezes fazemos uma cena com alguém de fora da banda e é boa e -"

Júlia, interrompendo: "Dizes, tipo, ‘isso era fixe para a MINHA banda'".

Maria: "Ya, roubar os outros, é assim que se faz música".

E é isto. Conversar com os Passos não é muito diferente de vê-los em palco: cada um apanha os ganchos dos outros, dá a sua achega, todos cheios de pica e de vontade de falar e fazer. "Quando começámos a gravar o disco ninguém dava um colhão por nós", diz João Marcelo. Decidiram fazer o disco tendo uma única premissa: que "quem ouvisse sentisse que eram putos a tocar e não músicos".

Podem então dar-se por satisfeitos, "Até Morrer" soa exactamente ao que é: alta voltagem servida por miúdos sem freios. Nunca esquecer: de cada vez que um par de adolescentes descobre a fúria de uma guitarra, o rock'n'roll estrebucha e reinventa-se e volta a ser fresco e único e a melhor coisa das nossas vidas outra vez.

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